Selecione

Capítulo 19

Texto Original

Caput XIX

De custodia qua super fratres vigilabat, et de contemptu sui et vera humilitate.

 

51. 
1 Reversus est vir beatissimus Franciscus corporaliter ad fratres suos, a quibus, sicut dictum est, numquam spiritualiter recedebat. 
2 Cauta et diligenti examinatione omnium acta perquirens, felici semper curiositate in subditis ferebatur, nihil impune relinquens, si quid minus recti deprehenderet perpetratum. 
3 Et primo quidem spiritualia vitia decernebat, deinde diiudicabat corporalia, ad ultimum exstirpans occasiones omnes, quae peccatis solent aditum aperire. 
4 Omni studio, omni sollicitudine custodiebat sanctam et dominam paupertatem, non patiens, ne quando ad superflua perveniret, nec vasculum in domo aliquod residere, cum sine ipso utcumque posset extremae necessitatis evadere servitutem. 
5 Impossibile namque fore aiebat satisfacere necessitati et voluptati non obedire. 
6 Cocta cibaria vix aut rarissime admittebat, admissa vero saepe aut conficiebat cinere, aut condimenti saporem aqua frigida exstinguebat. 
7 O quoties per mundum ambulans ad praedicandum Evangelium Dei (cfr. Rom 1,1), vocatus ad prandium a magnis principibus, qui eum miro venerabantur affectu, gustatis parumper carnibus propter observantiam sancti Evangelii, reliquum, quod comedere videbatur, deponebat in sinu, manu ori adducta, ne quis posset perpendere quod agebat. 
8 De potu vini quid dicam, cum nec ipsam aquam, desiderio sitis aestuans, ad sufficientiam libere pateretur?

 

52. 
1 Accubitum vero suum (cfr. Cant 1,11), ubique receptus hospitio, nullis sinebat stramentis seu vestibus operiri, sed nuda humus, tunicula interposita, nuda suscipiebat membra. 
2 Cum quandoque corpusculum suum somni beneficio recrearet, saepius sedens, nec aliter se deponens dormiebat, pro cervicali ligno vel lapide utens. 
3 Cum comedendi aliquid suscitaretur, ut moris est, appetitus, vix acquiescebat illud postmodum manducare. 
4 Accidit namque quadam vice, cum infirmitate gravatus aliquantulum pullorum carnium comedisset, resumptis utcumque corporis viribus, introivit Assisii civitatem. 
5 Cumque pervenisset ad portam civitatis (cfr. Luc 7,12) , praecepit cuidam fratri qui cum eo erat, ut funem collo eius ligaret et sic eum quasi latronem per totam traheret civitatem, voce praeconis clamans et dicens: “Ecce, videte glutonem, qui impinguatus est carnibus gallinarum, quas vobis ignorantibus, manducavit”. 
6 Accurrebant proinde multi ad tam ingens spectaculum, et ingeminatis suspiriis collacrimantes, aiebant: “Vae nobis miseris, quorum vita tota versatur in sanguine, et in luxuriis et ebrietatibus corda et corpora enutrimus”. 
7 Sicque compuncti corde (cfr. Act 2,37), ad melioris vitae statum tanto provocabantur exemplo.

 

53. 
1 Multa quoque in hunc modum saepissime faciebat, ut et se ipsum perfecte contemneret et ad honorem perpetuum caeteros invitaret. 
2 Factus erat sibi tamquam vas perditum (cfr. Ps 30,13), nullo timore, nulla sollicitudine pro corpore oneratus, strenuissime obiciebat ipsum contumeliis, ne ipsius amore temporale aliquid concupiscere cogeretur. 
3 Verus sui contemptor omnes seipsos contemnere verbo et exemplo utiliter instruebat. 
4 Quid enim? Magnificabatur ab omnibus (cfr. Luc 4,15) et laudabili iudicio efferebatur a cunctis, sed solus ipse se vilissimum reputabat, solus se ardentissime contemnebat. 
5 Saepe namque ab omnibus honoratus, dolore nimio sauciabatur et favorem humanum pro foribus arcens, faciebat sibi e regione ab aliquo exprobrari. 
6 Vocabat quoque ad se fratrem aliquem, dicens ei: “Per obedientiam tibi dico, ut mihi duriter iniurieris et contra istorum mendacia vera loquaris”. 
7 Cumque frater ille, licet invitus, eum rusticum, mercenarium et inutilem diceret, subridens et applaudens plurimum, respondebat: 
8 “Benedicat tibi Dominus! (Num 6,24)”, quia verissima loqueris; talia enim decet audire filium Petri de Bernardone!”. 9 Sic loquens nativitatis suae humilia primordia recolebat.

 

54. 
1 Nam ut se perfecte contemptibilem demonstraret et verae confessionis exemplum caeteris exhiberet, cum in aliquo delinquebat, non erubescebat illud in praedicatione coram omni populo confiteri. 
2 Imo si forte sinistra cogitatione de aliquo tangeretur, vel casu quoddam invectionis emitteret verbum, statim cum omni humilitate illimet, de quo sinistrum quidpiam cogitaverat vel dixerat, peccatum confitens, ab eo veniam postulabat. 
3 Totius innocentiae conscientia testis non sinebat eum quiescere, omni sollicitudine (cfr. 2Cor 8,7) se custodiens, donec vulnus mentis mulcendo sanaret. 
4 In omni certe genere notabilium proficere, non prospici cupiebat, modis omnibus fugiens admirationem, ne umquam incurreret vanitatem. 
5 Heu nobis, qui sic te amisimus, digne pater, totius beneficientiae ac humilitatis exemplar: iusto quippe iudicio (cfr. Deut 16,18) amisimus, quem habentes cognoscere non curavimus!

Texto Traduzido

Caput XIX

Do cuidado que tinha pelos irmãos e do desprezo de si mesmo e da verdadeira humildade.

 

51. 
1 São Francisco voltou materialmente ao convívio dos seus frades, embora espiritualmente jamais se tivesse afastado, como dissemos. 
2 Interessava-se continuamente pelos seus, procurando saber com prudência e atenção o que todos estavam fazendo, e não deixava de repreendê-los por alguma coisa errada que descobrisse. 
3 Olhava primeiro os defeitos espirituais, depois os exteriores, e por último tratava de remover todas as ocasiões que costumam abrir as portas aos pecados. 
4 Com todo o cuidado e especial solicitude cuidava da santa senhora pobreza. Para impedir que se chegasse a ter coisas supérfluas, não permitia que tivessem em casa a menor vasilha, se fosse possível passar sem ela sem cair na extrema necessidade. 
5 Dizia que era impossível satisfazer a necessidade sem condescender com o prazer. 
6 Nunca ou raramente admitiu pratos cozidos. Se os aceitava, muitas vezes misturava-lhes cinza ou lhes tirava o sabor do tempero com água fria. 
7 Quantas vezes, andando pelo mundo a pregar o Evangelho de Deus, foi convidado para almoçar com grandes príncipes que tinham toda admiração e veneração por ele, e mal provava os pratos de carne para observar o santo Evangelho: ia guardando o resto dentro da roupa, embora parecesse estar comendo. Punha a mão na frente da boca, para que ninguém percebesse o que estava fazendo. 
8 Quanto a tomar vinho, que poderei dizer, se até quando estava morto de sede não admitia beber a água que bastasse?

 

52. 
1 Onde quer que se hospedasse, não permitia que sua cama tivesse colchão e cobertas: era o chão nú que recebia seu corpo despido, em cima da túnica. 
2 Nas poucas vezes que permitia a seu frágil corpo o favor do sono, era quase sempre sentado e sem se encostar, usando no lugar do travesseiro algum tronco ou pedra. 
3 Quando, como é natural, tinha desejo de comer, só a custo se permitia satisfazê-lo. 
4 Uma vez, estando doente, comeu um bocado de carne de galinha. Logo que recuperou as forças foi até Assis. 
5 Chegando à porta da cidade, mandou ao frade que o acompanhava que lhe amarrasse uma corda no pescoço e o conduzisse assim, feito um ladrão, por toda a cidade, clamando como um pregoeiro: “Vejam o comilão que engordou com carne de galinha, que comeu sem vocês saberem”. 
6 Muita gente correu para ver o estranho espetáculo e se pôs a chorar e a gemer dizendo: “Pobres de nós, que passamos nossa vida cometendo crimes e que saciamos o coração e o corpo com luxúrias e bebedeiras!” 
7 E assim, de coração compungido, foram chamados a uma vida melhor por tão grande exemplo.

 

53. 
1 Tinha atitudes dessas com muita freqüência, tanto para desprezar-se com perfeição como para convidar os outros a uma honra que não se acaba. 
2 Julgava-se desprezível, sem temor nem preocupação pelo corpo, que expunha valentemente aos maus tratos, para não ser levado por seu amor a cobiçar alguma coisa terrena 
3 Verdadeiro desprezador de si mesmo, sabia ensinar os outros a se desprezarem também, falando e dando exemplo. 
4 Resultado: era exaltado por todos e todo mundo o tinha em alta conta, pois só ele mesmo se julgava o mais vil e só ele se desprezava com ardor. 
5 Muitas vezes sentia uma dor imensa quando era venerado por todos e, para se livrar da consideração humana, encarregava alguém de o insultar. 
6 Também chamava algum irmão e lhe dizia: “Mando-te por obediência que me injuries com dureza e que digas a verdade contra a mentira dessa gente”. 
7 E quando o irmão, contra a vontade, o chamava de vilão, mercenário e parasita, respondia sorrindo e aplaudindo bastante: 
8 “O Senhor te abençoe porque estás falando as coisas mais verdadeiras. É isso que o filho de Pedro de Bernardone precisa ouvir!” 
9 Dizia isso para lembrar sua origem humilde.

 

54. 
1 Para mostrar quanto era desprezível e para dar aos outros um exemplo de confissão sincera, quando cometia alguma falta, não se envergonhava de confessá-la na pregação, diante de todo o povo. 
2 Até mais: se tinha algum pensamento desfavorável sobre alguém, ou por acaso tivesse dito alguma palavra mais dura, confessava na mesma hora e humildemente o pecado à própria pessoa de quem tinha pensado ou dito mal, e lhe pedia perdão. 
3 Mesmo que não pudesse fazer a si mesmo nenhuma censura, pela solicitude com que se guardava, sua consciência não lhe dava descanso enquanto não conseguia curar com bondade a ferida espiritual. 
4 Gostava de progredir em todo tipo de empreendimentos, mas não queria aparecer, fugindo à admiração por todos os meios, para não cair na vaidade. 
5 Pobres de nós, que te perdemos, pai digno e exemplo de toda bondade e humildade. Foi merecidamente que te perdemos, porque quando te possuíamos não nos preocupamos em te conhecer!