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Mês da Bíblia 2020

Publicado por Frei Moacir Casagrande | 20/08/2020 - 17:12

Abre tua mão para o teu irmão (Dt 15,11).

Fidelidade a Deus na dimensão social: corresponsabilidade para o bem comum, solidariedade, patilha, fraternidade.

A CNBB escolheu para o mês de setembro de 2020 um tema da literatura Deuteronômica, presente no livro chamado Deuteronômio.

ATUALIDADE

O jornal O Popular (Goiânia) do dia 04/08/2020 trazia um artigo, assinado por Ana Carla Abraão, que bem resume a situação atual de mãos institucionais que precisam ser abertas, colocadas em função do bem comum. Em seu artigo resumidamente cita 15 manchetes sobre escândalos no uso do dinheiro público, estampadas nos últimos dois dias, dos quais cito quatro:

“A metade das isenções fiscais que o governo concede é feita às custas dos recursos da previdência”.

“14 estados estouraram o limite de gastos pessoais”.

"65% dos juízes recebem acima do teto salarial”.

“Vale refeição de juízes supera o salário mínimo em 24 estados da federação”.

 

Um estado que legitima tais comportamentos está destruindo seu próprio povo.

CONTEXTO

Deuteronômio significa “Segunda lei”. Qual é a primeira? São os Dez Mandamentos de Moisés.  O livro do Deuteronômio se caracteriza por um longo discurso de Moisés em forma de despedida de seu povo, exortando-o a perseverar na obediência a Deus. Ele é claramente posterior ao discurso de Êxodo 20 e insiste repetidamente no tema da obediência fiel a Aliança, por parte de Israel.

Bem mais que uma coletânea de preceitos, o Deuteronômio consiste numa reflexão sobre os fundamentos de nossa obediência a Deus, por conta de sua ação na vida de cada pessoa e na história do povo em seu conjunto. Assim, o que determina a existência dos crentes é o reconhecimento da presença de Deus em sua vida e o engajamento numa resposta ao dom Dele recebido. Deuteronômio não é uma lei que se impõe do exterior, mas uma lei assumida em reconhecimento das infinitas bênçãos recebidas de Deus, por isso trabalha, insistentemente, na linha da exortação. Exortar é diferente de ordenar.

Tradição Deuteronomista: Iniciada no reinado de Ezequías por volta de 720 a C. teve continuidade até próximo ao período do exílio babilônico (587 a. C). O centro desta obra é o livro do Deuteronômio. Tendo como base o compromisso com a Aliança que foi uma das grandes bandeiras dos profetas. Javé e só ele é o Deus de Israel e Israel é seu povo (Dt 26,17-19). É resultado de um movimento de restauração religiosa que surgiu da população rural e foi assumido pelo rei Josias, respaldado pelo documento encontrado no templo de Jerusalém (cf. 2 Rs capítulos 22 e 23).

Para esta tradição Deus manifesta sua vontade na Lei. Ele é generoso, fiel, zeloso e ciumento. A pessoa humana recebeu dele a Lei e com ela, a autonomia. Com a Lei na mão, que é a vontade de Deus, cada um sabe como se comportar para ser feliz e realizado. Deus criou o mundo com poder de desenvolvimento rumo à plenificação, entregou todas as intenções e o mapa do seu projeto nas mãos da humanidade e se retirou para outros desígnios. Pela Lei-mandamento a humanidade sabe exatamente o que fazer para dar continuidade, mas não é obrigada a fazê-lo. O mundo, originalmente, é para ser paraíso, mas será de fato, o que as pessoas fizerem dele. “Eis que hoje ponho diante de ti a vida e a morte" (Dt 30,15). "Escolhe pois...." (Dt 30,11-20). O mundo é o grande campo de possibilidades, de opções, tanto para fazer o bem quanto para fazer o mal. Escolher a vida é fazer o bem. Fazer o bem é cuidar para que todos tenham acesso, participem, zelem e partilhem de todos os bens concedidos a nós gratuitamente por Deus. Esta é a razão para uma longa lista de direitos e deveres sociais (Dt 15), morais (Dt 9), religiosos e cultuais (Dt 12-14) para serem praticados.

A INTENÇÃO 

O Deuteronomista não é legalista, mas tem a Lei como instrumento da Justiça de Deus. Para o Deuteronomista a obediência é a exigência fundamental. Não se exige uma obediência intelectual, mas afetiva, pois a palavra de ordem é “Recordar”, isto é, fazer voltar ao coração. A palavra recordar aparece umas 15 vezes neste livro, mas a palavra coração aparece umas 50 vezes. O pecado é uma questão de decisão pessoal, pode ser superado pela prática da Lei.

A prática orante do Deuteronomista acontece em duas vertentes complementares: o culto à Lei e o protagonismo na história. Quem ama a Lei, faz a história segundo a Lei, agrada a Deus, mas acima de tudo plenifica a obra do criador em todas as dimensões. O Deuteronomista é avesso a prática dos cultos rituais e sacrificais. Se Deus escolheu Israel não é por mérito deste. Esta escolha implica uma missão: testemunhar o Deus que se revelou, para a vida de todas as nações (Is 49,6; 51,1-8; 58,10; Dt 4,32-40 e 11,8-17. Um exemplo de oração Deuteronomista é o salmo 119 (na tradução da Ave Maria é 118). A obra Deuteronomista inclui sete livros: Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis.

O livro resume uma tradição chamada Deuteronômica, fruto de um movimento surgido com a decadência do respeito à liderança de Deus entre o chamado “povo de Deus”. Nela está bem expressa a gangorra da vivência de Israel entre curtos tempos de fidelidade a Aliança e longos tempos de quebras, devassidão. No livro se esmiúça o modo de obediência que Israel deve proceder em cada aspecto da vida para se manter fiel a Deus.

O núcleo principal e mais antigo do livro é constituído pelos capítulos 12 a 26. Tais capítulos escritos no reino do Norte (Israel) foram encontrados durante a Reforma do Templo de Jerusalém, ordenada pelo rei Josias em 622 a. C., com o passar do tempo receberam uma considerável introdução e também uma conclusão. Em tempos mais recentes, depois do Exílio Babilônico, com o surgimento do judaísmo o Deuteronômio foi organizado em 613 “MITZVOT” mandamentos, divididos em obrigações (O que se deve fazer) e proibições (o que se deve evitar). As obrigações são 365, correspondentes aos dias do ano solar. As proibições são 248, correspondentes ossos do esqueleto humano.

Deuteronômio acentua o caráter “gratuito” do engajamento do crente na obediência a Deus, na fidelidade a Aliança. O engajamento não é uma imposição, mas um reconhecimento, uma ação de graças por tudo o que Deus já fez por cada um e pelo povo em conjunto. A expressão de tal engajamento tem a ver com todas as instâncias da vida: econômica, política, administrativa, cultural, sociológica, espiritual, etc...

CNBB

A Igreja Católica no Brasil nos convida ao aprofundamento da Aliança, na dimensão da solidariedade para com os pobres e sofredores. Eles são nossos irmãos nos quais a vida clama já quase sem fôlego, urgindo de nós uma resposta corajosa, consistente e prioritária. O mandamento escolhido, em seu texto completo, para vivenciarmos neste ano, está assim redigido: “Nunca deixará de haver pobres na terra; é por isso que EU te ORDENO: ABRE a MÃO em FAVOR do teu IRMÃO, do teu HUMILDE e do teu POBRE, em tua TERRA” (Dt 15,11). Tal prática é expressão de obediência a Deus do qual tudo procede generosamente. Deus fez Aliança com todos, mas nem todos reconhecem e cultivam a Aliança. O exercício de irmandade deve ser permanente, se concretiza no compartilhamento generoso, com o humilde e o pobre, dos bens que Deus, a todos confiou.

CONSIDERANDO O TEXTO

Há uma clara consciência de que a realidade é difícil, por isso diz: “Nunca deixará de haver pobres na terra”. Essa realidade não justifica a falta de atenção a eles. A ordem de abrir a mão considera tal realidade. Se ela não for corrigida, precisa, pelo menos, ser amenizada, pois a carência e a miséria, denunciam a falta de fraternidade, de solidariedade, de igual dignidade.

Abrir a mão é um imperativo divino. Ele abriu a mão ao criar o mundo. O texto é claro: abrir a mão é para favorecer. Ao abrirem as mãos, as pessoas expressam a imagem e semelhança Dele e o mundo será mais conformado ao Reino de Deus. O mandamento explicita, com quatro referencias, o alvo que a mão aberta precisa atingir. Primeiro “em favor do teu irmão”, significa aquele que está mais próximo, aquele tem laços de sangue, de cidadania, de etnia, etc... Segundo, “em favor do teu humilde”, seja ele quem for. Ser humilde é uma virtude. Humildes são as pessoas que não se impõem a ninguém, ocupam seu lugar, fazem o que precisa ser feito, sem pretensão de grandeza e de prevalecimento. A humildade é uma característica de Jesus. “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).

Terceiro, “em favor do teu pobre”. Aqui não se trata de virtude, mas de pessoa carente, necessitada, cuja vida está ameaçada, já não se limita à família, ou etnia, mas quem quer que seja que esteja em tal condição, precisa da minha atenção. Em quarto lugar “abra tua mão em favor da tua terra”. Terra aqui não é só o mineral, mas também o vegetal, o animal, engloba toda a realidade do planeta e da capacidade de gestar, gerar e alimentar a vida de todos os seres. Abrir a mão em favor da terra é cultivar, zelar, cuidar para que ela seja expressão da benção do Criador para todas as criaturas. A terra é organismo vivo, se não for cuidada pode morrer. A morte da terra é o fim de tudo o que está nela. São Francisco de Assis chamava a terra de “irmã e mãe”. Está mãe é criatura, e como toda a criatura precisa ser cuidada e cultivada. Se for usurpada, certamente morrerá e levará junto toda a vida que a habita.

APLICAÇÃO

O mandamento está no meio do texto que trata do perdão total das dívidas a cada sete anos (Dt 15,1-18), de modo que a igualdade seja cultivada diante de Deus, o qual criou tudo e colocou à disposição do ser humano para cultivar e guardar (G 2,15). Assim, a ajuda que alguém presta ao necessitado nunca tornará o necessitado seu refém. Está evidente a exortação evitar a exploração do semelhante em situação de necessidade (Dt 15,2). Algo muito diferente do que fazem o Fundo Monetário Internacional e outros órgãos de apoio ao desenvolvimento dos povos, que na verdade, acabam fazendo dos financiados, seus reféns, pois os juros multiplicam a dívida, que se torna impagável. Pior ainda, criam nos socorridos um sentimento de eterna gratidão por terem recebido nada mais do que aquilo que era seu direito. Neste mandamento, a usura, a ganância, do capital não tem vez. A ajuda ao necessitado é partilha dos dons recebidos de Deus, que ainda permanecem sob nossos cuidados.

Só a título de ilustração, neste período de pandemia entre 18 de março e 12 de julho a fortuna de 42 bilionários brasileiros cresceu de 34 bilhões de dólares o que significa 175 bilhões de reais na cotação do dólar dado dia 24/07/2020. Enquanto muitos arriscam a vida para não perder emprego, uns poucos multiplicam seu capital aproveitando da situação de urgência em que vivemos. Dados de Katia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil.

Mas não se trata só de bens materiais, perdão é um bem afetivo-espiritual. Quem perdoa liberta o perdoado de todo sentimento de obrigação de retribuição, limpa a alma para que viva a gratuidade aberta a todos, especialmente aos que ainda se encontram na condição da qual eles já foram resgatados. Abrir a mão é renunciar a busca de retribuição da parte de quem foi servido. Abrir a mão é exercitar a generosidade no caminho da gratuidade confiante naquele que é a fonte de todo o BEM.

Um eco de Dt 15, 11: “sempre haverá pobres na terra” está na resposta dada por Jesus aos que reclamaram do desperdício de perfume, por ocasião da unção em Betânia, conforme a narrativa dos evangelistas (Jo 12,8; Mc 14,7 e Mt 26,11). A partilha generosa, mão aberta significa isso, é a que mantém viva a chama da fraternidade, a fidelidade à Aliança, semente do Reino, que expressa a identidade de povo de Deus. Pois ser povo de Deus é cultivar a solidariedade, começando pelos mais necessitados. A atitude da mulher que unge Jesus é de profunda generosidade, total desprendimentos, de modo que ao oferecer o perfume, oferece a si mesma, incondicionalmente, totalmente, nada reservando para si. A murmuração sobre o desperdício, revela a miséria que habita o coração de tais pessoas. Os bens que Deus oferece não são pingados, mas derramados, fruto do transbordamento da graça, de modo que todos tenham acesso.

Quando Jesus abençoa e partilha o pão com a multidão (cf. Mc 6,36-44; Mt 14,13-21; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-13), sacia a todos e sobra bem mais do que foi abençoado. Ele ordena que a sobra seja recolhida, não porque ele seja “mão fechada”, mas para que se reparta com os que não vieram ou não puderam vir. O pão abençoado é sempre multiplicado de modo que atinja a todos em todos os tempos. O pão abençoado é o alimento do povo resgatado que vive a dimensão do Reino de Deus aqui e agora.

O Brasil está se empobrecendo, o mundo está se empobrecendo, o planeta está se empobrecendo, o ser humano está se empobrecendo, por multiplicar a voracidade e diminuir a gratuidade, focando no consumo individualista em vez de buscar o bem da coletividade. A solidariedade, a partilha, a generosidade, tem como meta empoderar cada pessoa para protagonizar a própria regeneração.

A PANDEMIA QUE ASSOLA A COMUNHÃO

Nunca, como nos tempos atuais, tivemos tanta oportunidade e facilidade de comunicação, tanto virtual quanto presencial. Isso pode acontecer com uma rapidez incrível. A presença de um vírus nos fez ver que nossas relações precisam ser bem mais pensadas e cuidadas do que simplesmente nos encontrar. É necessário ter o cuidado redobrado com tudo o que eu possa estar levando comigo ao encontro do outro, seja algo voluntário e conhecido, bem com o involuntário e desconhecido. Involuntariamente poderei levar a quem mais amo e vou encontrar com alegria, aquilo que menos quero: a doença. Preciso ter mais conhecimento e cuidado de mim, tendo sempre presente o outro, quem quer que seja que eu encontre pelo caminho. Os vírus dos sentimentos de inutilidade, mágoa, preconceito, superioridade, orgulho, desprezo, exclusão, ódio, vingança, etc... podem estar infectando cada pessoa, no mais íntimo dela. São eles que corroem os laços de família e de comunidade. São eles que impedem a soma de esforços na condução de um trabalho harmonioso para superar as adversidades do bem comum.

As iniciativas que deram origem às nossas congregações todas, vieram da docilidade ao Espírito Santo, seriamente abraçadas e cultivadas em suas vidas. Um olhar para uma grave situação de exclusão, uma escuta acurada de um clamor desfalecido, um toque profundamente aplicado a uma pele ressequida pelo abandono. Uma doação confiante, livre, determinada e desmedida, resgatou a porção abandonada do povo de Deus. Tais atitudes exigem o cultivo de uma espiritualidade que compreende muito mais que o encontro. Elas pedem um cuidado alargado e aprofundado de uma entrega confiante de todo o nosso ser, pois querendo ou não, onde vamos, levamos muito mais do que temos consciência. O mesmo acontece também em relação aos que recebemos.

Muitos dos vírus acima citados, aprendemos a mascarar, a driblar, a colocar em segundo plano. Seguimos contaminados e contaminantes. O Covid-19 apenas fez o favor de escancarar essa realidade. A máscara agora é exterior e de proteção dupla, para que eu não seja contaminado e nem contamine, ela, porém, não terá o efeito desejado se a outra máscara, a dissimulada, que usamos com tanta frequência, não for retirada.

A eficácia de nossa missão depende da verdade de nossa vivência. O Espírito está sempre ativo. Ele atua em terreno disponível que se faça favorável à causa do Criador em favor das criaturas, onde a primeira abençoada é a que se dispõe a servir. Vejamos, portanto, com que espírito, com que entrega, estamos trabalhando para que a causa de Deus, abraçada por nossos fundadores, possa higienizar, tornar saudáveis os serviços que nos foram confiados, bem como os serviços para os quais estamos sendo desafiados.

QUESTÕES PARA REFLEXÃO

Como está minha sensibilidade, meu exercício de compaixão? Como está minha participação, meu engajamento em causas para o bem comum, atuadas a partir do meu habitat? Qual é meu engajamento em políticas públicas em vista de uma cidadania que pratique os Direitos Humanos?

Sobre o autor
Frei Moacir Casagrande

Moacir Casagrande, Sacerdote. Nasceu no ano de 1955 em Putinga-RS. Filho de Domingos Casagrande e Rosina Lourenço da Luz. Ingresso na Ordem dos Frades Menores Capuchinhos no dia 02 de fevereiro de 1978.

Formação

Cursos de Filosofia e Teologia. Mestrado em Teologia, especialização Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana e Pontifício Instituto Bíblico de Roma

Áreas de atuação

Professor de Sagrada Escritura no ITEO, no IFITEG e no ISB. Assessorias Bíblicas, retiros e assembleias e tem cinco livros publicados e muitos artigos em várias revistas.

Livros publicados

Deus ontem e hoje (Ano: 1990)
Novo Testamento em 30 lições - Um jeito fácil de entender (Ano: 1992)
O Segredo do Evangelho (Ano: 2011)

Contato: [email protected]