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Solenidade das Impressões das Santas Chagas / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 17/09/2020 - 08:38

Solenidade das Impressões das Santas Chagas

Os estigmas, a teologia e a antropologia

“Uma manhã ... quando (São Francisco) estava orando em um lado do monte (La Verna), viu que estava descendo do céu um Serafim com seis asas tão de fogo quanto esplêndidas, descendo da sublimidade dos céus. ... entre as asas a efígie de um homem crucificado, com as mãos e os pés estendidos em modo de cruz e na cruz pregados. ... Alegrava-se pelo aspecto gracioso pelo qual via Cristo na figura de um Serafim olhando para ele, mas o fato de estar pregado na cruz atravessava sua alma com a espada da dor compassiva. ... quando a visão desapareceu, deixou no coração dele um admirável ardor, mas na carne imprimiu a figura não menos admirável, maravilhosos, dos sinais. Pois começaram a aparecer imediatamente em suas mãos e pés os sinais dos cravos ... As mãos e os pés pareciam pregados com cravos bem no meio ... O lado direito também tinha uma cicatriz rubra, como se tivesse sido transpassado por uma lança e, derramando sangue muitas vezes, molhava a túnica e as calças”.

Narrando o fato, isto é, a experiência de São Francisco, podemos afirmar que ele, levado pelo ardor seráfico do desejo presente em sua alma e que o raptava em Deus[i], foi tocado pela glória.

Nós, humanos, nascemos, existimos e somos em um mundo no qual podemos nos orientar, entender, nos comunicar, nos relacionar e encontrar sentido diante de tantas coisas, perguntas e acontecimentos. É claro que compreendemos o nosso mundo interno e externo a partir de uma gramática que recebemos, que nos determina e nos conforta enquanto colabora com o sentido[ii]. Mas isso não é tudo. Em nosso mundo de humanos existe também o “real”. O “real” é o impossível, aquilo que não pode ser simbolizado, aquilo ao qual a gramática “não dá conta”, não explica. O “real” permanece impenetrável ao sujeito, não pode ser reduzido à.... e, portanto, pode parecer absurdo.  O “real”, neste sentido, se aproxima das realidades tais como: Deus, o amor, o belo, a morte, o desejo de “desiderium”[iii]. São realidades que não se saturam, não se deixam enquadrar, não são domináveis, são vivenciadas, mas jamais esgotadas, pois são misteriosas (Quanto mais conhecidas, mais se tem por conhecer). Em contato com tais realidades misteriosas o ser humano passar não somente a ganhar mais espessura, mais profundidade, mais mistério, mais riqueza, mais significado e importância, mas também a se definir mais misterioso (Quanto mais se conhece, mais se tem a conhecer).

A realidade bela e amorosa de Cristo em forma de serafim alado diante de São Francisco certamente detinha a capacidade, o poder, de fazer sair do “torpor do cotidiano” a qualquer ser humano e de fato fez isso com São Francisco[iv]. Na experiência humana importa se deparar com tais realidades, pois elas geram uma chance para o nosso amadurecimento, se tornam como que um “querigma” que anuncia uma nova realidade e que espera uma nossa reação. Podemos afirmar, portanto, que a experiência de São Francisco com o Cristo em semelhança de um serafim alado, com o “real” naquela forma, gerou “conhecimento” acerca de Deus, o Principio, e acerca do humano. Não se trata, portanto, de um “empreendimento” humano primeiramente, de um “logos”, mas de um evento, uma novidade, que vem, que acontece, e que provoca, e que espera a boa reação do ser humano.

  Acreditamos que o “evento” “estigmas” deixa transluzir luz, lampo, esplendor, e se torna reflexo de Deus em sua grandeza, em seu fascínio. Em outras palavras: não “atrapalha” Deus, mas, ao contrário, permite que Deus se revele.

Devemos ser educados a respeitar o “evento” que a nós se manifesta, a se deter, deter nossa hybris, contemplar o “evento”, e não ficarmos presos na nossa própria mente ou cosmovisão. Assim sendo, nos daremos conta de um “outro mundo” presente em nosso mundo humano e que quase sempre não damos atenção ou não o vemos.

Na origem de todo verdadeiro “conhecimento-experiência” de Deus encontramos uma experiência na qual alguém ou um grupo se viu fascinado e subjulgado (“Überwaeltigung”) por uma plenitude: a plenitude equorea daquela realidade que gloriosa jorra dos abismos de Deus, eternamente fluente, manante e irresistível.

A nossa antropologia, ou seja, o nosso discurso sobre o ser humano e sobre as suas realidades - sócio-política, cultural, religiosa, psicológica, histórica, geográfica, sanitária, etc. - é chamado a respeitar o humano: não podemos nos deixar reduzir a um mero horizonte minimalístico, “raso”, “efêmero” e “fugaz”. Por exemplo, a nossa teologia, a nossa catequese, a nossa pastoral e anúncio do Reino são convidados a respeitar, a dar conta, do seu objeto de estudo ou discurso. E o objeto de estudo ou discurso aqui em questão é, ultimamente, a possível divinização ou filiação do discípulo de Cristo e a “Glória de Deus”. Devemos afirmar que a “Glória de Deus” é indomável, não totalmente compreensível e ilimitada. Dai que podemos afirmar que nenhum intérprete pode perscrutar, açambarcar e sondar a profundidade infinita da Palavra, da realidade, de Deus, exceto a Sabedoria eterna (increada) que interpreta a si mesma e que nos revela. Em outras: o conhecimento de Deus passar muito mais pelo ato de escutar e padecer sua presença do que um empreendimento teológico.

O nosso pensar e “discursar” sobre Deus através de conceitos teológicos, normas éticas, filosofias, e das mais diversas expressões artísticas (música, escultura, pinturas, cores, teatro, cinema, dança, canto, dança, templos e edificações, etc.) exigem esforço, afinco, santidade. Ao mesmo tempo, porém, devemos ser conscientes que estamos diante de uma realidade indomável, devido ao “excessus” que sempre apontará novas determinações, fazendo-se necessário, por isso, sempre, aquela atitude de piedade, de rendição, de maravilha e encanto, de arroubo. Decididamente, o homem diante de Deus é chamado a não se centrar em si, pois é chamado a conhecer, através do temor reverente, a realidade divina que a ele se apresenta.

 

 


[i] Narra-se que São Francisco alimentou em si um desejo: pediu a Deus a graça de antes de falecer sentir o quanto possível os sentimentos que levou Jesus a acatar a morte por amor nosso.

[ii]“Gramática”, isto é, tudo o que pode nos determinar porquanto nos antecede e nos acompanha ou que nos permite viver, pois é nosso ambiente vital. É difícil deixar a nossa “gramática”, pois nos sentimos confortáveis em nosso entorno tranquilizador, em nosso “dia-a-dia” no qual concebemos, planejamos e imaginamos nossos trabalhos e tarefas, uma visita por fazer, os contatos com os amigos e parentes, umas férias, um descanso, uma leitura, um futuro, etc.

[iii] Desejo de “desiderium” é aspiração, expectativa. O desejo de “desiderium” é sempre alto como o sideral e por isso é sempre siderante. O desejo de “desiderium” jamais paralisa, se torna pulsão que nunca paralisa diante de um prazer deste mundo, pois ele é “Plus ultra”. O desejo de “desiderium” dá prazer, mas um prazer em aberto, de aspiração, que nunca se esgota, sem ressaca e sem saturação. Prazer que convida a se levantar, ofertar, amar.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.