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Uma tragédia anunciada: crime e indignação

Publicado por Frei Douglas Leandro, OFMCap | 05/02/2019 - 09:20

 

Após 3 anos do rompimento da Barragem de Fundão na cidade de Mariana-MG os mineiros são surpreendidos com mais um crime socioambiental. Dessa vez, na cidade de Brumadinho.  A Empresa Samarco, responsável pela barragem que se rompeu em 2015, foi multada em mais de R$600 milhões, mas até hoje menos de 10% desse valor foi pago.

 

Relembre o caso de Mariana

O mar de lama devastou distritos, matou 19 pessoas, afetou todo o modo de vida da bacia do Rio Doce que tem mais de 800 km de extensão e banha os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Milhares de famílias foram afetadas. Muitas delas ficando sem água potável e sem trabalho. Em Governador Valadares, a maior cidade da região do Vale do Rio Doce, cerca de 280 mil pessoas foram afetadas. Toda a captação de água da cidade depende do Rio.

Na barragem de Fundão haviam cerca de 56 milhões de m³ de rejeitos, mais de 40 milhões de m³ vazaram. As extrações de minério de ferro das montanhas mineiras geram rejeitos, ou seja, quando se usa água para separar o minério de outros materiais que não tem valor comercial. De um modo geral os rejeitos deveriam ser compostos de água, areia e baixa quantidade de ferro. Entretanto, após o rompimento da Barragem de Fundão, pesquisadores encontraram no Rio Doce a presença de metais pesados em quantidade bem acima do aceitável. Metais como o manganês, cobre, alumínio, chumbo, arsênio e mercúrio estavam presentes na grande maioria das amostras feitas por Universidades e Institutos do Meio Ambiente.

Depois de todo esse tempo pouco ou nada foi feito para mudar a realidade das cidades afetadas por esse crime. Muitas famílias permanecem sem casa própria, em algumas cidades não há outro modo de captação de água que não seja no Rio Doce. Pequenos agricultores tiveram que se reinventar após a morte do Rio, os índios Krenak que sobreviviam do Rio ficaram sem o seu maior meio de subsistência. A empresa Samarco questionou todas as ações em relação as multas que deveriam ser pagas. Alguns dos processos contra a Samarco são provenientes de prefeituras das cidades que compõem a bacia do Rio Doce, Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Minas Gerais (SEMAD), Secretaria do Meio Ambiente do Espírito Santo, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) entre outros.

 

Sobre o crime em Brumadinho

Só no estado de Minas Gerais existem 698 barragens cadastradas. A Lista de todas essas barragens pode ser acessada clicando aqui. A Vale estava ciente do alto grau de risco de rompimento da Barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho. Configurou-se crime, uma vez que mesmo diante da seriedade dos fatos os mesmos não foram trabalhados de forma clara e objetiva a fim de evitar os danos humanitários causados.

Tragédia anunciada. A lentidão com que se seguiu a resolução dos problemas socioambientais provocados pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana, há três anos, já demonstrava a irresponsabilidade criminosa da parte do poder público e das empresas mineradoras. Depois da tragédia, alguns projetos de lei que visavam endurecer a fiscalização e melhorar o controle da extração de minério no país passaram, sem aprovação, pelo Congresso Nacional. Parlamentares patrocinados por empresários da mineração tentaram flexibilizar a legislação ambiental para favorecerem aos seus benfeitores do setor minerário.

Minério de sangue. Minas Gerais é um estado rico em recursos minerais e está há séculos sendo explorado de forma predatória. Os rompimentos de barragens vêm ocorrendo desde 2001, com menor veiculação nos noticiários. E as empresas responsáveis não quiseram aprender com os seus erros. O estado mineiro, por sua vez, tornou-se refém das empresas de mineração. A economia de muitos municípios de Minas gira em torno da exploração predatória por parte dessas empresas, que a troco de certas benesses, exploram ao máximo os recursos minerais e com o mínimo de investimento em infraestrutura, tecnologia e segurança para os trabalhadores.

Indiferença do mercado. Novamente a desgraça se repete e revela ao mundo como o estado democrático brasileiro está de mãos atadas para as multinacionais. As grandes corporações detêm seus representantes na política nacional, investindo e financiando milhões nas candidaturas de parlamentares que, quando eleitos, farão de tudo para favorecer tais empresas. A Vale S.A., depois de 2015, chegou a subir 200% na Bolsa de Valores. O mercado financeiro é insensível aos danos irreparáveis no meio ambiente e às vidas humanas. Tão somente o lucro, o sacramento da redenção do Mercado, é capaz de justificar as várias mortes no ecossistema. Morre gente, morre bicho, morre planta.

Brumadinho. Estamos todos atônitos diante dos noticiários sobre a pior tragédia humana provocada por rompimento de barragens. Mas falar em “tragédia” esconde a responsabilidade e negligência que configuraram o crime da Vale S.A. Na visita à localidade atingida de Parque da Cachoeira, ouvimos de vários moradores que a empresa estava ciente da iminente ruptura da barragem. Ano passado, uma simulação de possível rompimento foi realizada, treinamento de emergência foi organizado. Ouvimos também que a Vale realizou georreferenciamento da área, fez avaliação das propriedades. A instalação de sirenes foi concluída apenas há seis meses. Um trabalhador já alertava a família de que a barragem estaria minando água há vinte dias antes do rompimento. Outro morador chegou a fazer inúmeras denúncias aos órgãos competentes sobre os riscos de rompimento nos anos recentes e nada foi feito. Poder público e empresa silenciaram-se diante da tragédia anunciada e, no fim, o minério de sangue se sobrepôs às vidas humanas soterradas em dezenas de metros de lama.

 

Crime, tristeza e indignação

Na semana seguinte à tragédia/crime com o rompimento da barragem de rejeitos da Vale S.A, em Brumadinho (Minas Gerais), alguns frades capuchinhos, estiveram presentes em vários locais afetados e com mobilizações em Brumadinho. Em nome da Comissão de Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) dos capuchinhos do Brasil, os frades puderam presenciar a profunda tristeza de centenas de famílias que tiveram seus entes queridos ceifados pelas irresponsabilidades da Vale S.A, que atua com lucro de bilhões de dólares.

Assim como no Rio Doce em 2015, o rio Paraopeba, um dos maiores de Minas Gerais, já foi contaminado em grande parte. A indignação cresce ainda mais diante desta empresa, dado que é sabido de todos os riscos altos de centenas de barragens de rejeitos de minério presentes em Minas Gerais e em muitos locais do Brasil. A população está indignada com os altíssimos lucros para poucos empresários, enquanto os altos prejuízos e tragédias são socializados para o povo, com a ausência de investimentos mínimos para se evitar o rompimento de barragens como esta, e como ocorrido três anos atrás pela Samarco/Vale/BHP em Mariana.

Além da perda material muito grande: casas, sítios, animais, plantações foram contaminados e varridos pela lama. O óbito de centenas de trabalhadores da própria empresa e de sitiantes do entorno fez dessa fatalidade a pior das últimas décadas em perdas humanas. Na missa de 7º dia, presidida pelo arcebispo de Belo Horizonte, Dom Walmor, ele enfatizou várias vezes esta tragédia do rompimento da barragem da Vale como “crime, injustiça e descaso” presentes nesta empresa. Ressaltou também que isto se deve, nas palavras do Papa Francisco, à “idolatria do dinheiro” pelas grandes corporações em detrimento do cuidado com a vida humana e da criação.

A Comissão JPIC acompanha este crime trágico em parceria com outras organizações sociais, como o Movimento de Atingidos por Barragens, e organizações eclesiais, como a Comissão Pastoral da Terra, Sinfrajupe, Igreja e Mineração, entre outros. Há ainda temor de que esta lama possa chegar ao rio São Francisco, com consequências incomensuráveis, haja vista o rio perpassar vários estados brasileiros e é fonte de sustento para milhões de pessoas.

Indignados ainda com as informações de apenas 3 fiscais para mais de 400 barragens de rejeitos no estado de Minas Gerais, das quais muitas em graves risco de rompimento, além das denúncias de diversos funcionários, organizações e da população sobre o amplo conhecimento da empresa de todos estes riscos e sua grande indiferença diante de tais possibilidades, parecendo-lhe ser mais lucrativo não investir na segurança mínima da população ao redor destas barragens.

 

Experiência vivenciada por

Frei Douglas Leandro - MG, Frei Marcelo Toyansk - SP e Frei Warley Alves - MG estiveram presentes no local. A Fraternidade dos Capuchinhos mais próxima de Brumadinho fica a 44km do local do rompimento da Barragem. Frei Marcelo é coordenador da comissão JPIC da CCB os frades Douglas e Warley são residentes na fraternidade de Juatuba.

 

Sobre o autor
Frei Douglas Leandro, OFMCap

Graduado em Filosofia pelo Instituo Santo Tomás de Aquino (ISTA). Artista de Dança Contemporânea.