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COMENTÁRIO À BULA MISERIDORDIAE VULTUS: itinerário para conhecer a Misericórdia e exemplo em São Francisco

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 22/12/2015 - 14:02

I PARTE

Comentário à Bula Misericordiae Vultus

Na dia 11 de Abril do presente ano o Papa FRANCISCO proclamou o JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIAO com a Bula Misericordiae Vultus, ou seja, o Rosto da Misericórdia[1].

Somos do parecer que o texto deva ser conhecido, lido e meditado. Não demos por descontado! O advento do Reino de Deus que elimina tanta dor passa também através de uma conversão da mente, das ideias, da imaginação acerca das realidades divinas e do próprio rosto de Deus. Definitivamente a Bula quer plasmar nossa pastoral, nossa aproximação para com as pessoas: que a Igreja e os seus pastores se tornem cada vez mais misericordiosos, isto é, escutem o coração de quem se está diante, e não olhem o outro segundo os costumes, regras, leis, “pré-juízos”, etc. Isso se chama capacidade de alteridade.  Quem é este que está diante de mim? Vou a esta pessoa com pré-julgamentos?

O papa escreve que proclamou um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes. Imaginamos que o papa se refira a católicos qualificados que tenham uma marca própria, a marca da recepção, de facilitador a fim de que a outra pessoa apareça, se diga, se mostre, se sinta à vontade, incondicionalmente aceita, pois o Principio de tudo é misericordioso.

Nos perguntemos: quais imaginários se tem de nós católicos e quais ou qual é o mais preponderante?

Deus, mesmo sendo um mistério não é totalmente inefável. A História da Revelação foi nos revelando paulatinamente o mistério de Deus. Na plenitude dos tempos Jesus Cristo é o explícito do nosso Deus Uno e Trino. A pessoa de Jesus, sua presença em carne (voz, gestos, olhares, palavras, atitudes, lágrimas, decisões e sua cruz) é o rosto da misericórdia do Pai. Em Jesus se tornou patente o mistério: Verbum Caro Factum Est. O convite é por contemplar a humanidade de Jesus Cristo. Sem contemplar a carne de Cristo não conheceremos muito do mistério de Deus. O Papa chega a dizer que o mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras – Jesus, o rosto da misericórdia - a sua síntese[2]. Diz o Papa: “Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala de misericórdia. N’Ele, nada há que seja desprovido de compaixão”.

Urge contemplar este mistério, pois é fonte de alegria, serenidade e paz. O ser humano busca esta alegria e paz. Como a sede é aplacada pela água fresca assim também a paz teremos só diante de um Deus misericordioso que nos faz misericordiosos[3]. Daí que o Papa diz que este mistério é condição da nossa salvação, isto é, nos tira das águas que nos afogam, nos liberta de qualquer escravidão ou temor. Faz-se necessário deixar-se impactar, assombrar-se diante desse mistério, como que crianças diante de novidades.

Os mestres do espírito sabem que só diante de um amor incondicional o ser humano pode passar a se amar, dar valor a si e ter sossego. Contemplar um Deus misericordioso nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.

O Ano Santo teve inicio no ultimo dia 8 de Dezembro, solenidade da Imaculada Conceição. Esta data nos lembra o Proto-Evangelho do Genesis.  Perante a gravidade do pecado, Deus responde encontrando uma saída a fim de não perder o homem criado, e responde com a plenitude do perdão oferecido na descendência da mulher, Jesus Cristo. “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8). A Misericórdia sempre há de procurar uma maneira de salvar, pois o amor é forte como a morte, é uma faísca de Javé (cf. Ct 8).

A Bula fala da Porta Santa.  Forte símbolo de um ritual de passagem, o atravessar a porta quer nos fazer refletir que um caminho novo merece uma caminhada para lá chegar; depois, precisa-se de uma decisão, cruzar o umbral, o limiar, a porta, e assim adentrar em uma nova realidade, em uma nova visão de mundo, em um contemplar novos céus e nova terra, em um respirar novos ares..... Podemos “gastar” nossos anos de vida parados no limiar da “Porta” ou decididos e corajosos ir ao desconhecido mundo do divino que espera todo aquele que passa pela “Porta” (... só os violentos entram no Reino...).   Daí que o Santo Padre escreva: “Ano Santo como um momento extraordinário de graça e renovação espiritual”.

A Porta Santa será aberta no cinquentenário da conclusão do Concílio Ecumênico Vaticano II. Diante do que se medita na Bula somos desafiados a verificar dentro de nós se acreditamos ou não no ser humano ou realmente estamos fadados a não depositar nenhuma esperança em pessoas que conhecemos, em situações de povos, em uma nova sociedade, etc. Perigoso é não acreditar mais em melhoras, pois a consequência é se aliar aos vencedores ou resignar-se em um cinismo imoral.

Você aposta que o irmão possa mudar para melhor?  Você acredita que possa dar maiores e melhores passos significativos em sua vida?

A Bula, lembrando o Concilio Vat. II, se posiciona perante o mundo. “Desejamos notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a caridade. (...) Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. (…) Uma corrente de interesse e admiração saiu do Concílio sobre o mundo atual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridade e verdade exigiam, mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro”.  O Papa Francisco tem falado de “periferias existenciais”. Essa expressão convida-nos a entrar no existencial das pessoas, a considerar o tempo pessoal de cada um, os dramas biográficos de cada pessoa, e não partir logo da doutrina. O mesmo olhar podemos ter perante o nosso mundo: valorizar mais os anseios presentes em nosso mundo atual, que sempre trará algo de proveitoso, pois, afinal, o ser humano jamais deixará de ter a marca do Criador[4].

Detectamos anseios presentes em nossa sociedade e que por vezes os cristãos nem se apercebem ou nem se engajam na causa?

A misericórdia de Deus não expressa sua fraqueza, mas manifesta de modo especial a sua onipotência, diz o Papa. Isso nos convida a pensar na força que possa haver a misericórdia. Não se trata de uma realidade divina “fraca”, mas viril, pois é uma força, a força da misericórdia que vence a impiedade (marca dos ídolos segundo os santos padres). Qual é a força da misericórdia? É fazer Deus triunfar, reinar sobre minha pessoa abatendo os ídolos da impiedade que permeiam mentes e espíritos: “Naquele tempo, diz o SENHOR, serei o Deus de todas as famílias de Israel, e elas serão o meu povo” (Jer 31, 1).

Algumas passagens bíblicas citadas na Bula quer nos fazer entender que a misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas vísceras.

“Paciente e misericordioso”: “[O Senhor] cura os de coração atribulado e trata-lhes as feridas. ... O Senhor ampara os humildes, mas abate os malfeitores até ao chão” (Sl 147/146, 3.6 ).

Em algumas celebrações já assisti a passagem de um extenso tecido que faz as vezes do manto de Nossa Senhora. Assim imaginamos que o fiel veja a sua própria vida sendo passada pelo manto, pelo carinho de Deus presente mesmo naqueles momentos difíceis, mas entregues em confiança à Ele. Jesus cantou salmos antes da Paixão, rezou ao Pai com o Salmo da misericórdia, dobrando-se assim a ação misteriosa e misericordiosa de Deus em nossas vidas e na história dos homens. “Aleluia. Louvai ao Senhor, porque ele é bom; porque eterna é a sua misericórdia. Diga a casa de Israel, a casa de Aarão, que temeis o Senhor: Eterna é sua misericórdia. Na tribulação invoquei o Senhor; ouviu-me o Senhor e me livrou. Forçaram-me violentamente para eu cair, mas o Senhor veio em meu auxílio. O Senhor castigou-me duramente, mas poupou-me à morte. Abri-me as portas santas, a fim de que eu entre para agradecer ao Senhor. Dai graças ao Senhor porque ele é bom, eterna é sua misericórdia” (Sl 118).

Jesus nos revela a Deus como um Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada a recusa com a compaixão e a misericórdia. Conhecemos as parábolas da ovelha extraviada, da moeda perdida, e a do pai com os seus dois filhos (cf. Lc 15, 1-32). Nestas parábolas, Deus é apresentado sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos o núcleo do Evangelho e da nossa fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o coração de amor e consola com o perdão. Nestas parábolas assistimos a criatividade de Deus para salvar o pecador e como Deus “usa” seu ser divino justamente para salvar, e assim imaginamos que o Pai tenha esperado o filho mais velho tal como esperou o filho pródigo.

Sobre o tema do perdão. “Que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento” (Ef 4, 26). Tema comum na história de cada um. A falta de perdão, de misericórdia “trava” a fruição do amor e o coração fica envelhecido, petrificado. Por isso Jesus nos convida a perdoar abertamente, sem receios e sem reservas (setenta vezes sete). Há um passo decisivo para haver perdão e encontramos em Levitico 19, 17: 17 Não odiarás a teu irmão no teu coração; não deixarás de repreender o teu próximo, e não levarás sobre ti pecado por causa dele.  Caso não se exponha o mal ele cria raízes, ele mina sorrateiramente ou não as instituições (Igreja, paróquia, comunidades, fraternidades), o psíquico, o espiritual, a família, as nações... Por vezes devido a um certo sentimentalismo muito cultural em nosso meio tende-se a não expor o mal e pensa-se que isso seja misericórdia. Jesus, manso e humilde de coração, purificou o templo. A arte está em fazer uso da misericórdia, do perdão, para purificar o ouro, fazer brilhar o bem, pois a misericórdia é forte, eficaz e realiza, torna real, eliminando a mentira, o subterfúgio, as trevas. A caricatura do perdão é não expor o pecado, a malícia e o mal. Afinal, o filho pródigo reconheceu: “Pequei contra o céu e contra o ti...”.

Há estudiosos que afirmam que São Francisco fora um jovem narcisista e que a sua repugnância a leprosos na verdade era uma aversão a tudo que pudesse ameaçar o seu mundo idealístico de sucesso, saúde permanente, beleza e força juvenis, reconhecimento social... O leproso desmentia aquilo porque falava que somos pútridos, destinados à morte: golpe ao seu narcisismo. De qualquer maneira o mundo, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da técnica nunca antes verificado na história, se organiza assim: idealístico de sucesso, saúde permanente, beleza e força juvenis, reconhecimento social, poder, prazer, autonomia, etc.  E assim o homem se tornou senhor da terra subjugando-a e dominando-a. Um mundo desse se opõe ao Deus de misericórdia, pois não tem tempo para considerar quem não resiste ao sistema da lei do mais forte e do mais esperto, e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia de misericórdia, pois tal mundo apregoa o triunfo da “auto-nomia”, do “confort” e do cinismo perante os “perdedores e vencidos” (Vae Victis). A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem porquanto nos convida a pôr o dedo na ferida, pôr as mãos na humanidade; fazer-se, pelo menos um pouco, responsável pelo outro; direcionar os ouvidos para a história de vida dos semelhantes, para olhar o outro real diante de mim, nascendo assim a alteridade que nos tira do nosso invólucro, do ostracismo e narcisismo. A misericórdia não condiz a um mundo baseado em distancias reais de pessoas. Este mundo tem por marca o desespero – porque não quer ver sua realidade de criatura limitada -, o cinismo e a competição. Por outro lado, já Isaias dizia: “Não desprezeis a vossa carne”.

É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressarem ao Pai, devem irradiar misericórdia.

Nossas comunidades paroquiais tem espaço de recepção para acolher quem quer que precise de atenção? Nossas homilias dizem, falam às pessoas nos seus dramas reais de vida ou são somente oportunidades que usamos para criar atmosfera de sentimentalismo, de complexo de culpa ou ainda só para pedir?

Queremos viver este Ano Jubilar à luz desta palavra do Senhor: “Misericordiosos como o Pai”. O evangelista refere o ensinamento de Jesus, que diz: “Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). É um programa de vida tão exigente e espinhoso quanto rico de alegria e paz. O imperativo de Jesus é dirigido a quantos ouvem a sua voz (cf. Lc 6, 27). Portanto, para ser capazes de misericórdia, devemos primeiro pôr-nos à escuta da Palavra de Deus. Isso significa recuperar o valor do silêncio, para meditar a Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possível contemplar a misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida. Escutar é sacrificar o imediato, a tirania visão, o pensar que já compreendeu, o impor-se; e assim dar voz ao apelos de Deus que fala, chama e clama[5].

A peregrinação é um sinal peculiar no Ano Santo, enquanto ícone do caminho que cada pessoa realiza na sua existência. A vida é uma peregrinação e o ser humano é “viator”, um peregrino que percorre uma estrada até à meta anelada. Esta – a peregrinação - será sinal de que a própria misericórdia é uma meta a alcançar que exige empenho e sacrifício.

Para além de uma peregrinação a uma cidade, a um santuário, o Senhor Jesus indica as etapas da peregrinação através das quais é possível atingir esta meta:

a)       “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco” (Lc 6, 37-38).

b)      Julgar o irmão trai nosso ciúme e nossa inveja. Sobre o tema do ajuizar o irmão o Papa nos escreve: “É que os homens, no seu juízo, limitam-se a ler a superfície... Que grande mal fazem as palavras, quando são movidas por sentimentos de ciúme e inveja! Falar mal do irmão, na sua ausência, equivale a deixá-lo mal visto, a comprometer a sua reputação... Não julgar nem condenar significa ... não permitir que venha a sofrer pelo nosso juízo parcial e a nossa pretensão de saber tudo”.

c)       “Misericordiosos como o Pai” é, pois, o « lema » do Ano Santo. Na misericórdia, temos a prova de como Deus ama. Ele dá tudo de Si mesmo, para sempre, gratuitamente e sem pedir nada em troca. Vem em nosso auxílio, quando O invocamos. “Deus, vinde em nosso auxílio! Senhor, socorrei-nos e salvai-nos” (Sal70/69, 2). O auxílio que invocamos é já o primeiro passo da misericórdia de Deus para conosco. Ele vem para nos salvar da condição de fraqueza em que vivemos. E a ajuda d’Ele consiste em fazer-nos sentir a sua presença e proximidade. Dia após dia, tocados pela sua compaixão, podemos também nós tornar-nos compassivos para com todos.

            O documento do Vat. II sobre a Vida Religiosa traz o título: “A perfeita caridade”. Nos perguntemos seriamente se a “perfeita caridade” é programa de vida para nós. Podemos “cair” e ter como primeiro na vida o cargo, as posses, os títulos, o reconhecimento, o poder, etc. A tragédia está em pôr estas coisas como prioridades para os nossos poucos anos de vida que passam como poeira ao vento.

d)      Que a Misericórdia nos faça proativos. Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, no costumeiro que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, e no cinismo que destrói. Abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito por ajuda. As nossas mãos apertem aquelas dos semelhantes e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença que frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo.

Uma das maiores melhores experiências que um ser humano possa ter é aquela de perceber que alguém se antecipou em ajudá-lo, pois isso deixou claro que ele foi olhado, considerado. Nossas fraternidades estão sendo proativas neste sentido?

e)       A prova de que somos discípulos e o juízo particular. Por anestesia de nossa consciência não nos atentamos sobre “a prova” de que somos discípulos de Cristo. Paralisamos em nossos “status”: sou batizado, sou crismado, sou casado, sou frade, sou padre, etc. E assim acordamos e dormimos com a consciência tranquila. A verdade de que somos discípulos passa pela nossa caridade, não pelo nosso cargo, “status” ou ministério. Escreve o Papa Francisco: “É meu vivo desejo que o povo cristão reflita, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina. A pregação de Jesus apresenta-nos estas obras de misericórdia, para podermos perceber se vivemos ou não como seus discípulos. Redescubramos as obras de misericórdia corporal: dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar assistência aos enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. E não esqueçamos as obras de misericórdia espiritual: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos.

f)       Mateus, 25, 32ss narra o julgamento final, a hora e a palavra que ninguém poderá escapar.  Escreve o Papa: “Ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar a dúvida, que faz cair no medo e muitas vezes é fonte de solidão; se fomos capazes de vencer a ignorância em que vivem pessoas; qual nossa parcela para a promoção das crianças desprovidas da ajuda necessária para se resgatarem da pobreza; se nos detivemos junto de quem está sozinho e aflito; se perdoamos a quem nos ofende e rejeitamos todas as formas de ressentimento e ódio que levam à violência; se tivemos paciência, a exemplo de Deus que é tão paciente conosco; enfim se, na oração, confiamos ao Senhor os nossos irmãos e irmãs. Em cada um destes ‘mais pequeninos’, está presente o próprio Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga ... a fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós. Não esqueçamos as palavras de São João da Cruz: ‘Ao entardecer desta vida, examinar-nos-ão no amor’”.

g)      Por vezes nos acomodamos em dar uma ajuda, mas temos a preguiça de trabalhar pela real superação de situações que escravizam. Mantemos laços políticos desonestos, nos empenhamos pouco para ter um discurso inteligente de libertação; não temos uma palavra nova que ofereça luz e isso por causa de poucos esforços na oração, nos estudos, nos nossos retiros, em nossas formações. Há prisioneiros das novas escravidões da sociedade contemporânea e há cegos que vivem curvado sobre si. Estas escravidões e prisões exigem profecia, mas por vezes nos aliamos, não denunciamos, para destas situações tirarmos vantagens.

Sinceramente nos perguntemos sobre nossa prestação de serviço junto ao Povo de Deus. Nos perguntemos sobre a destinação que damos aos nossos dízimos. Devolvemos os dez por cento aos pobres?

h)      As páginas do profeta Isaías poderão ser meditadas, de forma mais concreta, no tempo quaresmal de oração, jejum e caridade. Esta passagem relaciona muito bem a saúde corporal e espiritual com o praticar a justiça, a vontade de Deus: “O jejum que me agrada é este: ... pôr em liberdade os oprimidos ... repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, ... e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se. ... Se retirares o gesto ameaçador e o falar ofensivo, se repartires o teu pão com o faminto e matares a fome ao pobre, a tua luz brilhará na escuridão, e as tuas trevas tornar-se-ão como o meio-dia. O Senhor ... dará vigor aos teus ossos”  (58, 6-11).

i)        Segundo a teologia, cabe propriamente ao presbítero administrar os sacramentos da Eucaristia, da Reconciliação e da Unção dos enfermos. É triste ver um sacerdote que não gosta de “confessar” e nem de visitar os enfermos. Na maioria das vezes isso acontece porque o presbítero é de tal forma envolvido com administração que o “próprio” dele fica relegado para o segundo plano.   Na Bula o Papa afirma que ser confessor não se improvisa: “Tornamo-nos tal quando começamos, nós mesmos, por nos fazer penitentes em busca do perdão. Nunca esqueçamos que ser confessor significa participar da mesma missão de Jesus e ser sinal concreto da continuidade de um amor divino que perdoa e salva. Que o anuncio da reconciliação chegue também às pessoas fautoras ou cúmplices de corrupção. Esta praga putrefata da sociedade é um pecado grave que brada aos céus, porque mina as próprias bases da vida pessoal e social. A corrupção impede de olhar para o futuro com esperança, porque, com a sua prepotência e avidez, destrói os projetos dos fracos e esmaga os mais pobres. A corrupção é uma contumácia no pecado, que pretende substituir Deus com a ilusão do dinheiro como forma de poder. Para a erradicar da vida pessoal e social são necessárias prudência, vigilância, lealdade, transparência, juntamente com a coragem da denúncia. Se não se combate abertamente, mais cedo ou mais tarde torna-nos cúmplices e destrói-nos a vida”[6].

j)        O Papa nos convida a ouvir o pranto das pessoas inocentes espoliadas dos bens, da dignidade, dos afetos, da própria vida. Diante do choro, da dor e do sofrimento mudemos de vida, deixemo-nos tocar o coração. Permanecer na indiferença ou no caminho do mal não passa de ilusão e é até triste. A verdadeira vida é outra coisa. Deus não se cansa de estender a mão.

Neste contexto, não será inútil recordar a relação entre justiça e misericórdia.

Não dividamos o mundo julgando pessoas e apontando: “Este presta, aquele não presta”. Cabe a nós detectar o mal feito, e oferecer o “remédio”, mas jamais fazer juízo de valor.

A propósito, é muito significativo o apelo que Jesus faz ao texto do profeta Oséias: “Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios” (6, 6). Jesus afirma que, a partir de agora, a regra de vida dos seus discípulos deverá ser aquela que prevê o primado da misericórdia, como Ele mesmo dá testemunho partilhando a refeição com os pecadores.  O Senhor fez justiça perante o crime de Davi e seu pedido de perdão: perdoou-lhe!

A misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar.

O Jubileu inclui também o referimento à indulgência dentro do mistério da comunhão dos Santos. Sabemos que somos chamados à perfeição (“Sede perfeitos como o vosso Pai do céu” - Mt 5, 48 - ), mas sentimos fortemente o peso do pecado. Ao mesmo tempo que notamos o poder da graça que nos transforma, experimentamos também a força do pecado que nos condiciona. Apesar do perdão, carregamos na nossa vida as contradições que são consequência dos nossos pecados. No sacramento da Reconciliação, Deus perdoa os pecados, que são verdadeiramente apagados; mas o cunho negativo que os pecados deixaram nos nossos comportamentos e pensamentos permanece. A misericórdia de Deus, porém, é mais forte também do que isso. Ela torna-se indulgência do Pai que, através da Esposa de Cristo, alcança o pecador perdoado e liberta-o de qualquer resíduo das consequências do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no amor em vez de recair no pecado.

Algumas práticas para o Ano Santo da Misericórdia:

- anunciar, pregar a misericórdia divina em nossas comunidades cristãs;

- dias de estudos para maior conhecimento da Bula;

- fazer conhecida a Bula em outros ambientes (radio, TV, escolas, empresas, hospitais, prisões, etc.). Lembre-se que há muito de “social” na Bula, especialmente quando toca nos temas da corrupção e da violência;

- valorizar mais o sacramento da Reconciliação durante todo o ano;

- “A iniciativa « 24 horas para o Senhor », que será celebrada na sexta-feira e no sábado anteriores ao IV Domingo da Quaresma...”.

 


[1] Em algumas reproduções é expressiva a Santa Face de Jesus enquanto os olhos semicerrados e face cabisbaixa “falam” de nova realidade, “olham” para um mundo novo, o mundo interior e verdadeiro, o mundo real e amoroso, a essência e o principio de tudo: a misericórdia.

[2] Os santos liam os Evangelhos não somente para terem conhecimento, mas acima de tudo para terem os mesmos sentimentos de Cristo: caridade, compaixão, fé,adesão à verdade e à justiça ...

[3] Aqui temos uma questão antropológica. Aqui o dado da fé revela: o homem que nega a misericórdia em sua vida está fadado a não resistir ao juízo, ao fogo que devora, pois o Principio é misericordioso. Não entra na Vida sem a misericórdia recebida e dada.

[4] Veja-se as inúmeras ONGs, associações, movimentos, etc. que surgem na sociedade e que por vezes mostram maior sensibilidade do que as comunidades religiosas.

[5] Nossa tendência acadêmica tende demasiadamente a uma tirania da visão (expressa pelo entendimento através do logos) e some-se a isso o nosso frenesi que nos deixa inquietos, falantes demais. Frente a isso temos o primeiro mandamento: “Escuta Israel....”.

[6] Imaginemos quantas famílias que sofrem por causa do desemprego; quantos sonhos de melhoria na casa propria, nos estudos e no lazer foram abortados pela crise política e econômica, também agravadas pela corrupção.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.