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Solenidade do pai seráfico São Francisco de Assis / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 03/10/2020 - 19:25

Solenidade do pai seráfico São Francisco de Assis

“Jesus tomou a palavra e disse: ‘Dou-te graças, Pai, porque ocultando estas coisas aos entendidos, tu as revelaste aos pequenos ...” (Mt 11, 25-30).

Francisco se casou com a Dama Pobreza, tornou-se pequeno.

 Casar-se com a Dama Pobreza é fazer as pazes em ser criatura, não necessário, e é casar-se com o próprio aniquilamento. Aniquilamento? Sim: não escolher a si próprio, mas a Deus; perder, gastar a própria vida pelo Evangelho (cf. Mt 14, 24-25).

Aqui teremos uma criatura grata pelo dom da vida. A vida passa a ser um hino de louvor, não um reter nem o ser próprio. Aqui a criatura deixa de ser sujeito (sub-jectum), “assujeitado” pelo meio no qual cresceu, e se abre para a vida do Eterno, para outra gramática, outra linguagem, outro horizonte. Aqui temos um São Francisco “‘enxergando’ não sei o quê” e cantando o cântico do Irmão Sol.

Casar-se com a Dama Pobreza é acatar em si a maior experiência possível de Deus nesta vida, é divinização, filiação. Procurar casar-se com a Dama Pobreza é se reinventar sempre, não se bastar no poder de ter e possuir a fim de ser algo mais belo. Sem a Dama Pobreza, tudo o mais “parece” poder casar comigo, mas não casa comigo, não se estabelece comigo[i]. Daí a insatisfação.

A Dama Pobreza é o “mais-além”. São Francisco se delongava em contemplando a humanidade do Filho de Deus. Afinal, o lado mais humano do homem é o seu padecimento, sua carência, precisão, sua necessidade. O que se esconde neste estado de criatura privada e inacabada?

São Francisco via a Dama Pobreza como pobre e bela. O doce tornou-se amargo e o amargo, doce. Passou a saborear o seu humano, o seu padecimento, o seu ser inacabado. O Cristo, ele o encontrou no leproso purulento! Mas a Dama, a humanidade do Filho de Deus, tem um poder próprio: se aceita, leva o amante a Outro. Casemo-nos com ela, portanto!

O ser humano “centrado em si” e em suas fantasias de grandeza, ou outras, jamais se converterá (“conversão” enquanto mudança de rota para, a partir de então, vislumbrar um algo novo na vida), jamais sairá de si para encontrar o Outro. Jesus disse: “O Reino está próximo, convertei-vos”, e não: “Convertei-vos, o Reino está próximo”. Isso significa que primeiramente deve haver a irrupção do Reino, da Palavra[ii], um rompente proveniente do Eterno para nos tirar do torpor, do estado de “centrado em si”. Quanto é resistente o teu torpor, leitor? A Dama Pobreza nos promete um “gioire” desconhecido por nós[iii]. Usufruímos de um “gioire” localizado naquilo e naquela coisa precisa (numa música, numa pessoa, num passeio, numa graduação etc.). O “gioire” ofertado pela Dama Pobreza não é isto ou aquilo, não é pequeno, não é mesquinho, não é bem localizável, toca o céu, se aproxima da lógica do inefável, é misterioso (quando mais se dá a conhecer, mais tem por revelar): a linguagem não pode açambarcar, restando ao sujeito se deixar levar[iv].

Que pena! A Dama Pobreza é desprezada, como nos diz “Sacro Commercium”. A Dama Pobreza para ser reinventada, para resplandecer nas almas cansadas e neste mundo marcado por feiuras precisa ser amada por um homem. 

São Francisco, abraçando o leproso, o crucificado, e amando a Dama Pobreza, acolhia o nada, a falta de que não temos tudo, nem todos e não podemos tudo[v]. Fazia-se pobre. E naquela indigência fazia-se possível, pela Graça, o aparecimento de uma realidade poderosa, a realidade do Amor – que é o próprio Deus. Poderosa porque vence a morte: “Aquele que ama passou da morte para a vida” (1Jo 3, 14).

O Amor abraça quem ama a Dama Pobreza e aí o ser humano encontra a Paz. A marca de São Francisco é ser o irmão menor de todos e da criação: a Paz reina no entorno de Francisco. Assim, a criatura, para além de toda pujança que se acaba, desemboca em uma fruição e pujança duradoiras, impossíveis de se dizerem, impossíveis de ser representadas. A criatura humana se torna lugar de ação para o Criador e receptáculo da presença das outras criaturas. São Francisco, homem de desejo, foi primeiramente desejado pelo Criador. E na tensão de desejar e ser desejado manteve o viço, a vida, e cantou: “... e é morrendo que se vive para a vida eterna”.

 


[i] Dom Juan, o conquistador, teve inúmeras amantes, mas morreu sozinho: não se estabeleceu e nem se “casou” com nenhuma delas.

[ii] “Palavra” (Dabar. Verbo. Ação). Fala de uma ação de Deus que “pro-voca” o homem: provocou Abraão a deixar a casa dos pais e prometeu o Impossível, o Invisível....... Provocou Lázaro: “vem para fora ...  deixai-o caminhar”. A fé judaico-cristã tem a marca da “Palavra” que de um lado dá sentido às coisas e de outro lado continua sendo um mistério, pois a Palavra de Deus é o próprio Deus agindo, nos convidando sempre a algo mais. Ver a baixo o testemunho de Inácio de Antioquia.

[iii] O verbo “gioire” em italiano significa um “proveito” no sentido de degustar, saborear um bom vinho, uma boa comida; significa um entregar-se às boas companhias, a um passeio em meio à natureza; significa um contentamento e um dar e receber, uma entrega.

Gioire” “promete”, nos projeta para um “plus ultra”. É um estado sem “aperreio”, talvez aquilo que Kant chamou de Zweckmässigkeit ohne Zweck: vive-se o momento presente; momento este não perturbado por nenhum objetivo. Acreditamos que em português o verbo mais próximo seja “regozijar”, em inglês seja “to enjoy” e em francês “jouir”.

[iv] Há no nordeste brasileiro a expressão “reinar”. Onde se reina? Geralmente a mãe tem vontade de reinar em seu bebê, isto é, vontade de apertar, beliscar... as bochechas rosadas. Temos a atração que acessa a Deus, eis o sentido dos sentidos espirituais que passam também pelos cinco sentidos. De um lado, temos o desejo que é uma coisa que sai de mim. A atração é outra coisa: é algo outro que me desmancha porque não tenho como enquadrar, compreender. É siderante.

[v] “Oh, nada desconhecido, Oh, nada desconhecido! A alma não pode ter melhor visão neste mundo do que contemplar o próprio nada e morar nele como na cela de uma prisão” (Il libro de La B. Angela de Foligno, p. 131).

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.