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Homilia do XXVIII Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 10/10/2020 - 08:46

XXVIII Domingo do Tempo Comum - ano A - (Mateus, 22, 1-14)

- “O reino dos céus é semelhante a um rei que preparou a festa para o casamento de seu filho. Enviou os escravos para chamar os convidados à festa, mas eles não quiseram vir. Mandou novamente outros escravos, ordenando-lhes: ‘Dizei aos convidados: o banquete já está pronto, os bois e animais de corte já foram abatidos; tudo está preparado, vinde para a festa’. Mas, sem se incomodarem, eles se foram, um para o seu sítio, outro para o seu negócio. Outros agarraram os escravos, maltrataram-nos e os mataram. O rei ficou furioso e mandou seus exércitos exterminar aqueles assassinos e tocar fogo em sua cidade. Depois disse aos escravos: ‘A festa está preparada, mas os convidados não eram dignos. Ide, pois, às encruzilhadas dos caminhos e chamai para a festa todos os que encontrardes’. Os escravos saíram pelos caminhos e reuniram todos que encontraram, maus e bons, e a sala da festa ficou cheia de convidados. Quando o rei entrou para ver os que estavam à mesa, viu ali um homem que não vestia roupa de casamento, e lhe disse: ‘Amigo, como entraste aqui sem vestir roupa de casamento?’ Mas ele ficou calado. Então o rei disse aos que serviam: ‘Amarrai-o de pés e mãos e jogai-o lá fora na escuridão; ali haverá choro e ranger de dentes’. Porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos”.

-Muitas imagens são usadas numa tentativa de revelar, seja o rosto de Deus, seja a forma correta de entrar em relação, em religião, em contato com Ele. Por vezes Deus é chamado “rei”, outras vezes como “pai de família”, algumas vezes como um “patrão”, “Altíssimo”, “Santo”, “Senhor”, “Redentor” etc. No Evangelho de hoje é apresentado como um rei que tem um filho e esse filho está de casamento marcado. Para a festa de casamento somos convidados. Jesus Cristo é apresentado, portanto, como esposoSomos convidados a ir ao encontro do esposo. São Mateus, apresentando Nosso Senhor como esposo, está sugerindo que passemos a amá-Lo. Uma coisa é se relacionar com Deus por medo, por proteção, por favores, por bênçãos, por obrigação, para deter castigos em forma de ritos e aplacar uma ameaça divina (Tudo isso pode ser compreensível, somos imperfeitos). Outra coisa, porém, é viver nossa fé em Deus amando-O. O convite para a festa de casamento é para isso, para amá-Lo, para fazer aliança, amizade, comunhão com Ele.

- Infelizmente houve um “não”, não aceitaram o convite, insistem e persistem em não querer o dom maior, o dom do Filho: não querem o Filho de Deus. Fazer as pazes, a reconciliação, com nossa origem não é bonito? Nossa origem não é um acaso, mas uma pessoa que nos criou expressando sua bondade, seu amor. Por que trair o noivo, então? No amor, no matrimônio, um se torna a vida do outro: eis o tema das núpcias, do casamento. Romper o matrimônio com o Senhor é perder o contato com o que de mais humano tem o ser humano, significa que uma pessoa, no mais íntimo da sua alma, decidiu viver “mantendo sempre a distância” em relação aos outros e ao próprio Deus, jamais buscando comunhão com alguém: o amor foi banido de sua vida.

- Não tem jeito: toda pessoa tem o seu “Deus”. Por qual motivo ou pessoa se esteja disposto a batalhar, a buscar, a sofrer, este motivo ou esta pessoa será o seu “Deus”. Neste sentido não existe ateísmo. Jesus Cristo acordava cedo, procurava um lugar reservado e se colocava em colóquio com seu Pai: o seu sentido maior, sua fonte, seu desejo maior. Qual o seu desejo maior, leitor? O seu desejo maior será o seu “Deus”. Tranquilidade? Reconhecimento? Sombra e água fresca? Prazer? Dinheiro a qualquer custo? O próprio eu? Não foi por acaso que muitos rejeitaram o convite do “Rei”. Não quiseram sentar-se na mesma mesa com o “Rei” e seu Filho. O ser humano, infelizmente, rejeita, por vezes, o convite a fazer comunhão, fazer amizade e família, não com um estranho e inimigo, mas com o próprio Criador, com a sua própria origem e fonte. Já pensou perder a própria origem e fonte? Não chega a ser um disparate, uma loucura? É como uma casa que rejeita o seu alicerce. É como diz Jeremias: “Porque meu povo cometeu dois crimes: ‘Eles me abandonaram, a fonte de água viva, para cavar para si cisternas, cisternas furadas que não podem reter água’” (Jer 2, 13). Se o meu alicerce é falso ou malfeito, eu sairei disforme. Não é por acaso que vemos o ser humano reduzido a uma mera coisa que compra e vende, labuta e dorme, engana e é enganado, corrompe e é corrompido, usa e é usado, assedia e é assediado, trai e é traído, não ama e não é amado.

Por que será que se rejeita a própria fonte, Deus? Provavelmente porque a pessoa prefere abocanhar o outro, devorá-lo, passar por cima do outro. E, assim, sua própria voracidade se torna o seu “Deus”. Isso acontece quando se vive nesse mundo, com os pés na terra sem a cabeça erguida aos céus. Rejeitando a própria fonte, Deus, o homem se atola e se atrapalha em busca de outra fonte ou se desmanchando enquanto adora sua própria voracidade.

- Existem situações que dificultam ainda mais ao homem reconhecer que precisa mudar para ter sua casa em alicerces verdadeiros. Por exemplo, quando tudo aparentemente caminha dentro dos conformes. Se os sumos sacerdotes, escribas e anciãos do povo rejeitaram o convite do “Rei” foi simplesmente porque as coisas estavam tão favoráveis à eles que simplesmente eles não perceberam que o “gigante de aço, que eram eles mesmos, tinha pés de barro”.

No Evangelho de hoje a rejeição acontece pelo motivo de que eles eram idólatras, mesmo louvando a Javé. Estavam dispostos a batalhar, suar, sofrer e morrer por campos e os próprios negócios; tinham suas próprias idéias, crenças; estavam já bastantes ocupados e ocupando o tempo que deveria ser dedicado para a festa de casamento do Filho do Rei. Realmente é verdade: preenchemo-nos com nossos mesquinhos projetos, com nossas mágoas, com nossa cupidez, com nossa preguiça, nossos julgamentos para com os outros, em concorrência com os outros, com invejas e tudo o mais. Desta feita é-nos quase impossível adentrar no Reino, aproximar-se do Noivo, experimentar Deus e sua ternura, simpatia, brandura. Jamais teremos o regozijo que somente participando da festa do Filho podemos experimentar. Oxalá não sejamos pervertidos! É-se pervertido quando se impede, quando não se deixa, a água do rio alcançar o mar, quando escoamos a água do rio para “Mamona” (a idolatria da avareza) e para o desfrute do outro, para posse das pessoas.

- Chama a atenção pelo fato de nem mesmo se incomodarem (“Mas, sem se incomodarem, eles se foram, um para o seu sítio, outro para o seu negócio” - v. 5). De fato, se diz que quando você passa um bom tempo num ambiente fedorento começa a não mais se incomodar. Muito grave tudo isso! Será que o ser humano pode, aos poucos, ir perdendo a sua verdadeira imagem e semelhança? Isso se chama degeneração! (“Pessoa degenerada”).

- Ir para a festa de casamento e amar o esposo é praticar a Palavra, pois “Nem todo aquele que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas quem ouve a Palavra e a põe em prática”.  O não praticar, portanto, será o rejeitar o alicerce, a fonte, Deus: será, então, uma idolatria.  Praticar é dizer “sim” e ir para a vinha, é fazer comunhão, é dar frutos. Não basta ver o mel e dizer que seja bom. Não basta dizer “creio”, “acredito”. Importa se lambuzar de mel. Importa praticar: aí, sim, a pessoa terá provado e terá se implicado totalmente (lambuzado) com algo novo, com a realidade divina e terá também adentrado no quarto nupcial reservado somente aos noivos (“O Senhor está mais próximo, íntimo, de nós, do que nós de nós mesmos” – Santo Agostinho).

- O rei mandou chamar os “desocupados”, bons e maus. “Desocupado” – não ocupado - significa que no turbilhão de nossos afazeres e preocupações não viremos uma “Marta” da vida toda frenética e agitada só nos afazeres do cotidiano, sem descanso e sem silêncio para ouvi-Lo. Tenhamos um espaço não ocupado, o lugar de escuta, de atenção. Nada nos impeça de receber o convite e de ir para a festa do Filho, pois no dia que isto fizermos, no dia que tivermos sabotado a nossa ida à festa do Filho, teremos banido Deus, a Alegria, a Vida, de nossa vida.

Um dia, um rapaz comeu tanto ovo com farinha que quando trouxeram um belo prato das mais finas iguarias, simplesmente ficou olhando, desejando, até, mas como a “barriga” estava saturada de farinha e ovo, “precisou” descartar aquele melhor e mais belo prato. Trata-se de manter a liberdade. Só quem é livre aceita o convite. Por vezes somos escravos de uma situação que nos metemos; por vezes não temos coragem de dizer “não” à situações que não somam; outras vezes somos cheios de pensamentos negativos (“O que os outros vão pensar?”; “Aquele ali não presta!”); outras tantas vezes compactuamos com idéias e situações para fazer parte de um grupo, para ser aceito, notado e para aparecer. Podemos, também, como escravos, aderir a grupos e movimentos que destroem. E existem ainda outras formas de escravidão que impedem nosso acesso à festa do Filho do Rei: ciúmes, inveja, prostituição, feitiçarias, ódios, discórdias, iras, rixas, dissensões, divisões, bebedeiras, orgias.

O juízo final: “Quando o rei entrou para ver os que estavam à mesa, viu ali um homem que não vestia roupa de casamento....” (v. 11). Um homem sem a roupa digna, isto é, sem frutos, estéril, que leva uma vida que não soma e que só presta desserviço. No entanto, tal homem tenta participar da festa de qualquer maneira, sem roupa digna, sem prática de vida honesta: lobo em pele de ovelha.

Tenhamos a roupa digna, vivamos como filhos do Pai, irmãos dos demais filhos do Pai: eis a vontade, desejo do Pai. O “Crucificado” nos dá a veste digna (cf. Mt 27, 35) no dia que batemos no peito reconhecendo-nos pecadores e nos convertendo: “Ide, pois, às encruzilhadas dos caminhos e chamai para a festa todos os que encontrardes. Os escravos saíram pelos caminhos e reuniram todos que encontraram, maus e bons, e a sala da festa ficou cheia de convidados” (vv. 9-10).

- Quem é esse homem sem as vestes dignas? Quem são os que não aceitaram o convite?  São os adoradores do próprio estômago (cf. Rm 16, 17) que transformam a fé em magia (“Eu penso, eu desejo, eu quero... e que Deus faça o que eu quero, desejo e penso”). “Adoradores” incapazes de terem a piedade, o amor e a docilidade para com o Senhor. Aqui a pessoa se “absolutizou”, tornou-se só, sozinho, sem laços, sem vínculos. Ao lado de alguns, mas jamais com alguém.  Só existe para si e seus apetites, e ai de quem esteja por perto. Já dizia os romanos: “Ai dos vencidos”. Sem eira e nem beira, não conhece limites para os seus delírios de grandeza, pois para tal pessoa os outros não existem. Triste fim: não participa da festa, do dom, não ganha nada, perde tudo.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.