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Homilia do XXVII Domingo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 03/10/2020 - 08:10

XXVII Domingo do Tempo Comum (Mateus 21, 33-43)

Um pai de família plantou uma vinha e arrendou tudo a uns lavradores.  Depois mandou por duas vezes escravos receberem dos lavradores sua parte dos frutos. Os lavradores mataram todos e depois, para ficarem com a herança, mataram o próprio filho do pai de família. Jesus, na parábola, declara que o filho, a pedra rejeitada se tornará a pedra principal, pois o Senhor faz maravilhas. E diz ainda: “O reino de Deus será tirado de vós e será dado a um povo que produza os devidos frutos. Aquele que cair sobre esta pedra ficará despedaçado, e aquele sobre quem ela cair será esmagado”.

A parábola do pai de família que plantou uma vinha revela o rosto de Deus, sua intimidade. A marca do zelo, da ternura e do cuidado de Deus, revelado por Jesus, se expressa de muitas maneiras:

- “Plantou uma vinha”: o Pai revela seu amor aos filhos. Plantar a “vinha” é um trabalho paciente e inteligente, que exige empenho e fadiga. Faz-se necessário encontrar o terreno adequado, ará-lo e drená-lo, escolher e plantar cada pé de videira. Não se planta de qualquer maneira, é uma por uma com todo esmero, amor, atenção, delicadeza, alegria e zelo: já pensou ser criado e tratado assim?

- E qual será a maior alegria do Pai? Que cada videira frutifique segundo o bom desejo do seu coração: que os filhos, as videiras, se tornem luz para os irmãos, cachos de uva que embelezam, saciam, alegram com o vinho, alimentam. Já pensou uma comunidade, uma família onde cada um é uma videira para o outro?

- “Plantar a vinha” sintetiza a ação de Deus pelo seu povo eleito, desde os patriarcas até os Juízes, desde a promessa da terra prometida até o dom da Palavra (o Verbo se fez carne e fala nossa linguagem). Esta vinha estaria pronta para responder ao amor do Pai com o amor aos irmãos. Se não faz isso é como a figueira estéril. (cf. Mt 7,12; 22,36-40; Dt 4,6s e Lv 19,18).

- “... cercou-a com uma sebe”: A sebe delimita e protege a propriedade dos ladrões e de animais que estragam a plantação. Símbolo da lei, que caracteriza o povo na sua diversidade: torna o povo semelhante a Deus, indicando-lhe o bem e protegendo-o do mal. Imaginemos, aqui, o pai de família que protege a seus filhos alargando seus braços para, assim, abraçá-los: Deus protege seu povo com a Lei, assim como o pai com um abraço.

- “... escavou um tanque para esmagar as uvas” é o altar do qual sobe o sacrifício agradável ao Senhor que é a misericórdia do homem (cf. Mt 9,13; 12,7). E se faltarem as uvas? Parecerá que tudo foi em vão, a tristeza reinará tal como uma figueira estéril e amaldiçoada (cf. Is 1,10-20; 58,1ss; Jer 7,1ss; Am 5,21-27; Ml 3,1-5).

- “... construiu uma torre”: A torre faz lembrar o templo! A torre não permite que a vinha seja devastada, é nela que os frutos são recolhidos. Assim, o templo não se torna casa de comércio e malfeitores, mas casa abundante de comunhão com o Pai e com os irmãos de todas as raças. Que nossas liturgias não sejam de aparência, mas momento de celebrar a vida cristã que se vive, vida de comunhão.

- “... e arrendou tudo a uns lavradores” que deveriam se comportar como Adão, colaborar com a ação de Deus cultivando e sendo custódio do jardim (cf. Gn 2, 15), e não destruindo para possuí-lo.

- “... Foi para um país estrangeiro”. Deus não é um intrometido, bisbilhoteiro, ciumento! Mas doa ao ser humano tudo que é humano, sobretudo a liberdade de agir como ele. Feito ao sexto dia, o homem, tem o dever de casa de levar a criação ao sétimo, ao descanso de Deus. Por isso a parábola diz que ele foi para um país distante, se fez ausente, e assim a responsabilidade é entregue aos filhos adultos que vivem como irmãos. Por vezes, os homens preferem não ter liberdade, vendem suas almas a um “príncipe encantado”, a um guru, a um líder religioso. Deus quer filhos amigos que estabelecem relações marcadas pela liberdade. E é grande liberdade colaborar na construção do próprio nome aderindo ao desejo de Deus que nos chama sempre para o assim dito “impossível” (Jesus disse: “Farei de vós pescadores de homens”; “Vereis o céu aberto”; “Farei obras maiores do que as que eu fiz”).

Vale a pena lembrar que se ele se faz estrangeiro podemos encontrá-lo pedindo acolhida (cf. Mt 25,31-46). A ausência de Deus é a chance deste mesmo Deus aparecer no irmão.

- Na parábola, diz-se que o pai de família plantou, cercou o terreno, construiu um tanque e uma torre e confiou a produção a outros. Atitudes que demonstram e simbolizam cuidado, zelo e amor de Deus para conosco. A parábola quer nos revelar que o Senhor veio fazer amizade, pacto e aliança conosco; veio mostrar o acesso a uma vida plena e sensata; veio mostrar a cura de Deus e saciar a fome de muitos; veio iluminar a todos; veio perdoar todos os nossos crimes e oferecer a própria vida por nós.

- A mesma parábola (cf. vv. 38-39), no entanto, nos revela a péssima recepção que muitos fizeram ao bom Deus, ao bom Jesus: a decisão de manter-se longe e distante do Senhor; a rejeição feita a Jesus e a firme decisão de matá-lo. E tudo isso com a diabólica intenção de roubar-lhe a vida, ficar com a herança matando o Filho (Se fizerem isso, vocês serão como Deus, serão imortais, disse a serpente – cf. Gn 3, 5).

- “Eles vão respeitar o meu filho”, pensou amorosamente o pai.  O pai expondo o “filho” está expondo a si próprio, pois um homem só é pai se tem um filho. O filho é que lhe faz ser um pai. Perdendo o filho, não há mais pai. O dono da vinha envia o que de mais precioso ele tem, é a sua essência. Perder o filho significaria perder-se como pai. Alto risco! Tudo isso é como se dissesse: “Mais do que isso não posso fazer, pois o que faço, enviando meu filho, é enviar a mim mesmo, toda a minha pessoa”. Alto risco!

- Qual será a condenação para os homicidas? (cf. v. 40). Aqueles que escutavam a Jesus responderam: “Fará perecer de morte horrível os malfeitores e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe dêem os frutos a seu tempo”.  E, assim, pensamos que Deus seja mais violento do que os malvados, e exerce justiça com a mesma moeda. Na verdade, a condenação que os homicidas merecem será paga pelo próprio Senhor, que por nós se fez maldição e pecado, para que nos tornássemos justiça de Deus (cf. Gal 3,13; 2Cor 5,21). Por isso Jesus declara:

A pedra rejeitada pelos construtores é que se tornou a pedra principal. Foi obra do Senhor, digna de admiração para nossos olhos? Por isso eu vos digo: O reino de Deus será tirado de vós e será dado a um povo que produza os devidos frutos. Aquele que cair sobre esta pedra ficará despedaçado, e aquele sobre quem ela cair será esmagado”.

 A reação do pai que perdeu escravos e filhos e tudo o mais é continuar sua obra de salvação, de continuar preparando uma nova vinha em vista de belos frutos, e não fazer ninguém pagar na mesma moeda.

- Jesus, o Filho, a pedra desprezado pelos irmãos (os chefes do povo e do sistema religioso da época), se torna pedra angular de um novo templo, não de pedras, mas de “adoradores em espírito e verdade”. É o Filho que nos dá a herança divina, nos faz ter o mesmo “sangue” de Deus. É o Filho que une o Pai aos filhos que somos nós, e une os irmãos entre si, não importando que sejam de origem pagã ou judaica. Um novo templo é erguido. A obra maravilhosa e digna de admiração, aqui, é que a nossa violência que despreza os profetas e o Filho provoca a misericórdia divina. A Igreja reconhece em Jesus o Cordeiro imolado e vitorioso (cf. Ap 5,6.13), que vence o mal com o bem (cf. Rm 12,21), apagando em si a nossa potência de morte, deixando que extravasemos nossa violência sobre ele, tal como pai que do filho mais velho recebe toda ira, escárnio e reprovação (cf. Lc 15, 11ss). 

- Por que é obra digna de admiração? Porque do mal que lhe fizemos, ele fez um bem. Um dia os homens cometeram um crime quase impensável, mataram o autor da vida (cf. At 3, 15). No entanto, a Palavra se faz valer e não deixa o caos predominar (“A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o Oceano e um vento impetuoso soprava sobre as águas. Deus disse: ‘Faça-se a luz’! E a luz se fez.....” - cf. Gen 1, 2ss).

Naquele dia, quando a “Pedra” rejeitada se tornou pedra angular, mais uma vez o mundo se recria cheio da glória de Deus.  Com sua morte na Cruz, Deus cria e oferta o bem supremo para cada um de nós: o dom de si.  Algo semelhante vemos em José do Egito: “Vós planejastes fazer o mal contra mim. Deus, porém, teve em mente com isso um bem: conservar a vida de um povo numeroso, como hoje está fazendo” (Gen 50,20). “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (cf. Rm 8,28).

Divinamente, santamente, “com os perversos, Deus é astuto” (Salmo 17 ou 18,27): roubamos seus dons, e Ele faz do nosso furto, da nossa agressão, o seu dom! No dia que o soldado maldosamente transpassou o coração de Jesus, saiu, para ele, o perverso soldado, o melhor que Jesus tinha: sangue e água que jorraram do mais íntimo de Jesus, do seu coração. Deus, o sumo bem, se oferta à nossa humanidade naquilo que esta tem de pior.

- “O reino será tirado e será dado a “outros lavradores” (v. 43): serão aqueles que vendo o sinal do Filho do homem baterão no peito (cf. Mt 24,30), reconhecendo o próprio “não”, a própria aversão ao Senhor, o próprio pecado, e ao mesmo tempo reconhecerão o eterno “sim” e amor de Deus que é fiel em amar-nos mesmo quando somos traidores. Trata-se de acatar o dom do Messias, superando a autossuficiência. Os novos lavradores darão frutos, o fruto da vida fraterna, verdadeiros frutos de conversão. “Colocarei minha lei no seu seio e a escreverei em seu coração. Então eu serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jer. 31,31-34).

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.