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Homilia do XXIX Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 17/10/2020 - 08:19

XXIX Domingo do Tempo Comum - ano A - Mateus 22, 15-21

“.... Enviaram-lhe discípulos, juntamente com os herodianos, para lhe dizer ...   ‘É justo pagar imposto a César ou não?’ .... Jesus falou: ‘Mostrai-me a moeda do imposto’. Eles lhe apresentaram um denário.  E Jesus lhes perguntou: ‘De quem é essa imagem e inscrição?’ Responderam eles: ‘De César!’ Então Jesus lhes disse: ‘Pois devolvei a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’”.

“Não terás outro Deus além de mim”: nenhum outro! (Dt 5, 7).

A única imagem de Deus é o homem livre, e o modelo é Jesus de Nazaré.

A liberdade não é escolher ou fazer caprichos, mas, sim, querer e praticar o bem. Deus quer seus filhos livres, querendo e praticando o bem. Para que isso aconteça, urge quebrar amarras que nos aprisionam: divindades pagãs que se apoderam e escravizam pessoas em nome da religião e sistemas sociais onde o dinheiro separa as pessoas entre “valiosas” e aquelas “não valiosas”.

E Jesus disse: “Devolvei a César o que é de Cesar e devolvei a Deus o que é de Deus” (v. 21).

- Vivemos em um “Estado laico”.  E isso é bom!  A origem do “Estado laico” visa proporcionar a convivência de todos os cidadãos com suas diferenças religiosas e culturais, a fim de que um grupo religioso ou cultural não passe a perseguir outros grupos. O “Estado laico”, portanto, não existe para banir as culturas e as religiões da vida dos cidadãos e da vida comum de um povo. Neste sentido, podemos até afirmar que a semente do “Estado laico” encontra-se no próprio cristianismo que apregoa a tolerância também para com aqueles que pensam diferente.

 - Este “César”, este “Estado laico”, tem limites? Sim, tem!

Naquela moeda, apresentada a Jesus, havia a “gravura” do imperador Tibério César. A moeda, portanto, em ultima instancia, pertencia a César. Por isso, Jesus diz aos herodianos para devolverem a César aquilo que é de César. Mas existe também uma “gravura”, uma “imagem”, que pertence a Deus: o rosto de todo ser humano que vem a este mundo. Não somos imagens de César, não sirvamos a nenhum “César”. Somos a imagem de um original: Deus. Nossa origem está em Deus. Que não esqueçamos disso!

Devolva e restitua à Deus aquilo que é de Deus, o que lhe pertence” (cf. v. 21). O “Estado” e os vários “César” não podem abocanhar os filhos de Deus, as pessoas. Por vezes, governos, constituições, leis, ideologias, líderes religiosos e políticos pretendem dominar de tal maneira as pessoas que sugam suas almas, fazem suas cabeças, mudam seus juízos, trocam suas opiniões, ludibriam suas mentes, dizem o que podem ouvir e não ouvir, forçam-nas a novos usos e costumes, alteram o sentido das palavras, manipulam nossas crianças e por ai vai. Então.... principalmente duas coisas não podemos negociar com os “César” de plantão desse mundo: a liberdade dos filhos de Deus e a comunhão, a amizade entre os irmãos, os filhos de Deus.

- Escolher por qualquer motivo é arbítrio. Usar o livre-arbítrio é sempre escolher o bem, e liberdade vai mais além.  Liberdade é chegar a praticar o bem: “agarrar”, escolher, aderir e praticar o bem. Então... que a minha alma, a minha liberdade, o meu espírito fique livre para o “bem” fazer. No dia que um “César” dominar sobre a minha pessoa, naquele dia perderei a liberdade, viverei somente para abocanhar os outros, mesmo em nome de amor e carinho, jamais para fazer comunhão com os demais. Perdendo a liberdade, torno-me escravo. Escravo dos meus apetites ou escravo dos apetites de um outro que elegi como o “César” da minha vida.  E ainda escravo porque obrigado a servir aos apetites de um “César” opressor. Qualquer tipo de escravidão termina sempre impossibilitando o encontro com um outro humano. Quando sou aprisionado por mim mesmo ou por um “César” qualquer, deleto a quem não me agrada ou a quem não agrada ao “César” que me domina. O que se fará com o mais fraco, o idoso, o inválido, o enfermo, o pobre?

- Alguém diz que o “César Dinheiro” venceu: a maioria está possuída por tal demônio (o “César” dinheiro) e nem se apercebe. Um possuído por tal demônio bem que poderia num momento de exorcismo dizer:

Se o ‘César Dinheiro’ se apossou de mim, eu sou ele, ele faz parte de mim e eu faço parte dele. Com ele me identifico e me lambuzo, e sem ele.... dá uma dor de cabeça...., passo mal, me desespero. Por causa dele estou disposto a vender tudo, todos os meus princípios e valores. Não é por acaso que se diz: ‘todo homem tem seu preço’. Na verdade, tenho um pacto de amor e servidão com o ‘César Dinheiro’ que se tornou para mim um fetiche, tomou o lugar de Deus, pois na verdade “César dinheiro” é uma alternativa à Deus. Afinal, é impossível viver sem um Deus por servir, e eu escolhi a este que traz o nome de ‘Cesar Dinheiro’. Mesmo que ele seja inescrupuloso, pois em nome dele mata-se, vilipendia-se, mente-se, corrompe-se, sequestra-se, mata-se e retiram-se órgãos para serem vendidos, ele, o “César dinheiro”, traz poder e glória, e com ele eu me autoafirmo, me sinto ‘o tal’, me sinto divino, feliz, realizado”.

Como podemos imaginar, não deixa de ser um grande drama perder, esquecer, a nossa verdadeira e mais profunda pertença, e viver sufocado e dominado pelo demônio “César dinheiro”.

- Quem poderá restabelecer a saúde mental e espiritual daquele que se encontra possuído desta maneira? Como o possuído deixará a ilusão e o delírio que o demônio “César dinheiro” causa?  Jesus disse: “Devolvei a Deus o que é de Deus!” Com tais palavras Jesus intervém, avança, faz entrar em jogo a força e o poder de Deus a fim de libertar o homem do demônio “César dinheiro”. Obedecendo às palavras do Divino Mestre a pessoa volta a gozar de liberdade interior, volta a adorar somente a Deus, passar a se comprazer pelo fato de partilhar sua vida com os filhos de Deus, formando, assim, família humana, comunidade cristã, e procura, a partir dessa libertação, o bem comum e não mais só o dele.

- Cada vez mais vemos menos! O “César dinheiro” tem tirado de nós o horizonte maior de nossas vidas, nos reduzindo a uns anos de vida na terra, a um “ser” que compra, consome, come e dorme. Reduzindo-nos a não mais esperar nada mais do que aquilo que o “César dinheiro” possa oferecer.

- “Mostrai-me a moeda do imposto. Eles lhe apresentaram um denário” (v. 19) . O Evangelho atesta que Jesus não trazia nenhuma moeda no bolso. Ora, na moeda havia a imagem do imperador Tibério que se tinha proclamado divino, senhor dos outros. Isso mesmo: um mero mortal metido a Deus. Trazer aquela moeda significaria que Jesus aceitava esse “divino”. Em outras palavras, Jesus, não trazendo moedas está dizendo que o imperador não governa sobre ele e nem nele. Pode até conviver com ele, mas como mero governante que não tem nenhum direito divino sobre ele. Jesus não lhe entrega sua alma, não traz aquela moeda no bolso, não vive daquele ar poluído que é o sistema de Tibério. Jesus mantém sua liberdade de Filho. É, portanto, soberano. Aceitar aquela moeda significaria aceitar a ideologia da escravidão e da opressão que nega a liberdade dos filhos de Deus. A nossa liberdade é chamada a ser entregue a Deus, ao bem. Neste momento de nossa reflexão podemos nos perguntar: “Qual moeda trazemos em nossos bolsos?” “A quem servimos de verdade?” “Eu dou a Deus o que é dele?” “Faço-me oferenda a quê ou a quem neste mundo? Devolvo-me a Ele (“Pai, seja feita a vossa vontade”)?”

“Devolvei a César o que é de César” (v. 21).

- Deus não está na moeda e naquilo que ela representa (glória mundana que aumenta enquanto esmaga). Deus está no rosto humano, pois na pessoa humana vemos o reflexo do Original. O Homem é a imagem de Deus. “Onde dois ou mais estiverem reunidos, eu estou no meio deles”: na comunidade dos filhos de Deus encontramos o Senhor.

- É bem verdade que queremos sentir-se bem em tantos aspectos. De fato, Deus ao nos criar “plantou” grandes desejos em nós. Tenhamos grandes desejos! Somente tenhamos cuidado para não buscar a grandeza maior num estilo de vida enganoso, aquele estilo de vida apregoado pelos “César” desse mundo.

- “Devolvei a Deus o que é de Deus” (v. 21). Que nenhum filho de Deus seja apagado servindo ao “César” de plantão. Que cada filho de Deus possa, ao contrário, brilhar, resplandecer, sendo devolvido ao domínio do Senhor. Cuidado, portanto, a quê ou a quem nos damos!

- “Devolvei a Deus o que é de Deus” (v. 21). Acreditamos que nesta exortação exista também um pedido para que toda pessoa se torne um “glória a Deus”, isto é, que demos, com nossa vida, glória a Deus. Que nossa vida não seja apagada e mesquinha, mas que todos que nos vier a conhecer perceba que irradiamos solidariedade, partilha, esperança, fé, caridade e alegria verdadeira. Que o Senhor Deus brilhe em nossa face. “Devolver a Deus” significa, portanto, não reter a fonte de água viva que quer emergir e regar tudo que esteja ao nosso redor; significa não abafar o “Sol Maior” que quer brilhar e se fazer valer em nossa alma. Deixemos Deus ser Deus, como fez a Virgem Maria: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim a sua vontade”.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.