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Homilia do XXIV Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 12/09/2020 - 10:56

XXIV Domingo do Tempo Comum - ano A - Mateus 18, 21-35.

Não importa quantas vezes, pois importa aderir ao motivo que me leva a perdoar.

- “Então Pedro se aproximou dele e disse: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?’ Respondeu Jesus: ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’” (vv. 21-22).

Não temos outra saída: a sadia convivência familiar, comunitária e entre nações passa pelo perdão. E o perdão passa pela descoberta e vivência de uma verdade: a verdade de que o Pai nos dá gratuitamente a “vida-perdão” e esta “vida-perdão” devemos passar, também gratuitamente, aos demais. Oxalá nenhuma ofensa detenha o perdão! De fato, São Lucas e São Mateus nos exortam a perdoar sempre: “Se teu irmão pecar ... sete vezes no dia contra ti e sete vezes no dia vier procurar-te, dizendo: ‘Estou arrependido’, perdoar-lhe-ás” (Lc 17, 3-4)); “.... ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’” (Mt 18, 22). Praticando tal exortação, viveremos dando e recebendo perdão. O perdão, portanto, se torna o respiro do homem. Inspirando e expirando, recebendo e dando perdão, teremos saúde espiritual, teremos a vida do Eterno, do Pai, em nós.

- “Por isso, o Reino dos céus é comparado a um rei que quis ajustar contas com seus servos. Quando começou a ajustá-las, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos” (vv. 23-24).

Quem somos nós?  E se de repente nos considerarmos “servos” do grande “Rei”? E se de repente, como “servos”, o grande “Rei” nos confiar todo o seu tesouro, toda a sua vida, todo o seu respiro (dez mil talentos)?

Não somos um mero fruto do “acaso”, temos em nós o “hálito” do Eterno, participamos, respiramos a Vida que é o próprio Deus, temos seus “dez mil talentos”. Na verdade, terminaremos por descobrir que somos mais do que “servos”, somos herdeiros, filhos. Dez mil talentos é uma enorme fortuna. Cada um de nós recebeu do Senhor essa enorme fortuna, a vida, o próprio “eu”, a pessoa que somos. O Senhor nos dá tal fortuna e nos perdoa quando “roubamos” tal fortuna, quando “abocanhamos” a vida sem nenhum reconhecimento e gratidão, quando de maneira imbecil nos “metemos” a ser o criador de nós mesmos.

A vida é um dom, é uma enorme fortuna, não podemos dar nada em troca; e torna-se impagável, se a considerarmos como um débito, uma “coisa” por quitar. A atitude sábia e sadia diante deste dom é a gratidão, e a gratidão se torna vital em nós quando perdoamos qualquer dívida que outro possa ter para conosco.

Que fazer, então, com tal enorme fortuna? Procuremos viver, sempre agradecendo ao Senhor e passando adiante tal fortuna recebida: fiquemos devendo a todos o amor recíproco; porque aquele que ama o seu próximo cumpriu toda a lei, “paga o débito” (cf. Rm 13, 8).

A parábola fala de 10.000 talentos. Para termos uma ideia do quanto isso seja, um trabalhador precisaria juntar os salários de 200.000 anos para acumular tal quantia. Isso foge de um cálculo sensato. Mas a parábola quer que imaginemos isso mesmo: a vida foi nos dada, ninguém pode comprar tal dom: ou é um dom ou uma dívida impagável, pois é impossível pagá-la. Quem poderá pagar ao Criador o fato de ter sido criado à sua imagem e semelhança? O que se poderá dar em troca pelo dom que temos de cantar, sorrir, sonhar, chorar, querer bem, ter família, ansiar por coisas melhores, rezar, louvar, raciocinar, questionar, crer, esperar, enfim, viver a vida de humanos, a vida de filhos de Deus? Quem poderá pagar ao Criador o fato de nos ter dado o seu próprio Filho único mesmo sabendo que não teria boa recepção? A “enorme fortuna” só aumenta mais: não somente devo-lhe minha própria vida e o perdão dos meus pecados, mas também lhe devo Ele próprio – no seu filho – que se doou a mim. Ele é feliz de me presentear tanto, e, neste sentido, a “enorme fortuna” não é um débito ou uma questão de negócios, mas expressão de um amor sem condições, incondicional. Não é um débito que tenho para com Ele, mas um dom infinito que me fez sem calcular, pois o amor não tem medidas. Não fiquemos, portanto, calculando como ficar “quites” com Deus, nem como os outros ficarão “quites” conosco. Na verdade, devemos a todos o amor recíproco; porque aquele que ama o seu próximo cumpriu toda a lei, paga o “débito” (cf. Rm 13, 8).

- “Como ele não tinha com que pagar, seu senhor ordenou que fosse vendido, ele, sua mulher, seus filhos e todos os seus bens para pagar a dívida” (v. 25).  Quem neste mundo se aventurar a estabelecer uma relação de justiça com Deus, ficará sempre insolvente, inadimplente, em culpa, isto é, na jaula dos seus débitos. A lei sempre o acusará e a culpa para sempre será a sua sombra.

- “Este servo, então, prostrou-se por terra diante dele e suplicava-lhe: ‘Dá-me um prazo, e eu te pagarei tudo!’” (v. 26). Sísifo, por causa de um crime, recebeu como castigo passar a eternidade empurrando uma pedra até o lugar mais alto da montanha, de onde ela rola de volta. Quem deve a Deus pode também se iludir de um dia tudo pagar ao Senhor. Somente sairá dessa agonia se descobre a graça e o perdão. Um homem sem o perdão e a graça cairá no drama de Sísifo.

- “Cheio de compaixão, o senhor o deixou ir embora e perdoou-lhe a dívida” (v. 27). A nossa condição de pecadores em busca de expiação comove o Senhor, não lhe deixa insensível. São Paulo experimentou Deus: “A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”(Gal 2,20). O Senhor nos liberta de toda culpa, e quer nos fazer entender que nossa relação com Ele não é como uma relação entre patrão e escravo, mas relação de Pai e filho.

- O Evangelho nos narra a falta do perdão: “... Apenas saiu dali, encontrou um de seus companheiros de serviço que lhe devia cem denários. Agarrou-o na garganta e quase o estrangulou, dizendo: ‘Paga o que me deves!’ O outro caiu-lhe aos pés e pediu-lhe: ‘Dá-me um prazo e eu te pagarei!’ Mas, sem nada querer ouvir, este homem o fez lançar na prisão, até que tivesse pago sua dívida” (vv. 28-30).

É verdade! Não devemos dar por descontado a dificuldade que existe no oferecer perdão. No processo de perdoar, por vezes, se faz presente sentimentos contraditórios, conflitos, ambivalência, medo, raiva, agressividade, mágoas, situações penosas e antigas. É sensato, antes de oferecer o perdão, esclarecer duas coisas: a quem se perdoa e o quê se está perdoando. Lembremos-nos de Natam que apontou ao rei Davi o crime de adultério e homicídio. Lembremos-nos de Levítico que nos ensina a acusar o mal antes de amar o próximo: “... Repreenderás o teu próximo para que não incorras em pecado por sua causa. ... Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (19, 17-18). Mas, não esqueçamos, a exortação é perdoar, e mesmo que demore é nosso objetivo, nosso ideal. De fato, perdoar significa avanço psicológico e espiritual. Oferecendo ou liberando “perdão”, eu restauro o outro e meu mundo interior. Ao perdoar o outro, estamos dando descanso a nós mesmos, nos tornamos menos cruéis e carrascos conosco. Tornamo-nos mais livres e saudáveis.

Cuidado com o Deus que cremos: Jesus nos revelou um Deus que perdoa: “... eu também não te condeno. Vai, levanta-te e não peques mais”, disse Jesus à mulher pecadora. Tratamos os outros conforme o que acreditamos. Crendo no Deus de Jesus, terminaremos, mesmo que demore um pouco, por perdoar e, perdoando, nos apaziguamos.

- “... encontrou um de seus companheiros ... que lhe devia cem denários. Agarrou-o na garganta e quase o estrangulou, dizendo: Paga o que me deves!’” (v. 28). Cem denários, em comparação aos dez mil talentos, não é quase nada. Além do mais, o companheiro se acusou, reconheceu o débito, a culpa. No entanto, nos perguntemos: por que o servo mau fez tanto drama a tal ponto de se tornar cruel (“Agarrou-o na garganta e quase o estrangulou ... e sem querer ouvir, este homem o fez lançar na prisão, até que tivesse pago sua dívida”)? A resposta é mesmo esta: porque se esqueceu do fato de ser filho do grande “Rei”; de forma ingrata não mais reconheceu o tudo que recebera do Rei, ou seja, vida, perdão e filiação. E, assim, aconteceu o que não deveria acontecer: passou a sufocar o companheiro, a negar-lhe para sempre o perdão. Terrível isso! Espírito farisaico e ilusório: “Eu pago minhas contas a Deus “praticando” a lei, me autojustificando em minha consciência já pervertida, e tu deves pagar a mim o que me deves, pois eu me nego a te liberar, a te perdoar”. Mas, pensando bem, isso é uma loucura religiosa, é entrar em uma jaula de agonia, é a agonia de um Sísifo.

Agarrar e quase estrangular é não deixar o outro viver, respirar. É quando sempre o magoado e ressentido lembra ao outro do mal que se fez. É sempre “tocar” naquele assunto que envergonha o outro, com o intuito de fazê-lo pagar nem que seja abrindo a ferida. Que o mal deva ser acusado, estamos de acordo. Mas uma vez acusado, reconhecido... basta! “Se tiverdes em conta nossos pecados, Senhor, Senhor, quem poderá ainda respirar diante de vós?” (Sal 130,3).

- “Então o senhor o chamou e lhe disse: ‘Servo mau, eu te perdoei toda a dívida porque me suplicaste. Não devias também tu compadecer-te de teu companheiro de serviço, como eu tive piedade de ti?’” (vv. 32-33)

“Servo mau”, isto é, quando eu me nego a perdoar, termino por destruir minha condição de filho, pois entro na lógica farisaica do débito e crédito (Eu cometi..., eu devo pagar; ele pecou contra mim, ele deve pagar). Na verdade, quando não perdoo, revelo que não aceito nenhum perdão, não acredito na lógica do perdão, e, consequentemente, não perdoo também. Aceitar a lógica do perdão (dar e receber perdão) é entrar naquela única lógica capaz de salvar a minha saúde mental e espiritual, a nossa vida comum e fraterna e nossas famílias e comunidades. Trata-se de viver e atuar como filho do Pai. E o filho se assemelha ao Pai. A gravidade é que se não vivo como filho, estou morto. Por isso que se diz que perdoar é um milagre talvez maior do que ressuscitar um morto.

- “E o senhor, encolerizado, entregou-o aos algozes, até que pagasse toda a sua dívida. Assim vos tratará meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão, de todo seu coração” (vv. 34-35). O pecado dos pecados é matar a vida do Pai dentro de mim. Isso acontece quando eu não perdoo, quando eu mato a origem do perdão que me foi concedido. Perdoar não é uma potência ou capacidade minha, é oferta do amor do Pai que vive em mim. Perdoar é recordar o amor que o Pai sempre tem por mim e pelo outro. Mesmo que a tarefa seja árdua, vale a pena encetar tal caminho de perdão, pois será o aprendizado de construirmos comunidade, igreja, família; será a chance de reconstruirmos a própria vida e fazermos as pazes com a própria história.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.