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Homilia do XXII Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 29/08/2020 - 22:07

XXII Dom Comum Mateus 16, 21-27

- “Jesus começou a manifestar ... que precisava ir a Jerusalém”. A dose do remédio depende da gravidade da doença. Quando a batalha é grande, urge todos os esforços possíveis. Em Jerusalém reinava o “mundo” dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos escribas.

- “Vae victis” - Aí dos vencidos - diziam os romanos. Nosso mundo é cruel. Por vezes nos envergonhamos das “pessoas especiais” e que consideramos incapazes (daí as práticas de eugenia com ou sem abortos e eutanásia, por exemplo). Os “bons sentimentos” para com os demais e para com a criação são tolerados à margem da sociedade, pois no mundo de competição os “bons sentimentos” atrapalham. As relações humanas se tornam um usufruir recíproco ou uso do mais fraco pelo mais forte. A marca de um mundo paganizado é a indiferença e a impiedade. A religião mundana se organiza em cima de regras e leis, e nela o homem foi feito para o sábado, não o sábado para o homem. Jesus, sabemos, disse o contrário: “O sábado para o homem, não o homem para o sábado”. O que fazer com um leproso, com o pecador, com o pobre? A religião pagã (e da prosperidade, por exemplo) condena-os e mando-os embora. Jesus ensina a acolhê-los.

 - Anciãos, sumos sacerdotes e escribas representam o mundo que jaz sob a “... concupiscência da carne, concupiscência dos olhos (cobiça sem freios e limites) e a soberba da vida” (1Jo,2, 16). Nós jazemos nestes males, e Jesus entrará em Jerusalém, se confrontará com anciãos, sumos sacerdotes e escribas, isto é, se fará semente nesta terra mundana na qual nos encontramos a fim de curar o veneno do ódio com o remédio chamado amor e perdão.

- Quê fazer com um mundo desse? Um mundo assim tão enfermo merece um remédio à altura: corpo, alma, vida, sangue de Cristo. Aqui entendemos porque Jesus disse: “Vou a Jerusalém!”.

- Em Jerusalém, a “Semente” será lançada à terra (morte de Jesus): no centro do ódio que devasta a nossa sociedade um grito orante será lançado: “Pai, perdoa-lhes, não sabem o que fazem!”. Naquele dia um mundo novo começou. Todas as vezes que um inocente clama perdão pelos malfeitores, o Reino de Deus acontece, e o mal sofre um golpe mortal. Por isso Jesus disse: “Vou a Jerusalém”.

- Pedro, inspirado no Salmo 72 deseja só “ganhar”, só “ter razão”, só “vencer”: “Ó Deus, concede ao rei teu direito ... Tome ele a defesa dos humildes do povo ... esmagando o opressor ... Os habitantes do deserto se curvem diante dele, e os inimigos lambam o pó!  Os reis de Társis e das ilhas lhe enviem presentes, os reis de Sabá e Seba lhe paguem tributo, todos os reis se prostrem diante dele, e o sirvam todas as nações! ... Que ele viva, e lhe tragam ouro de Sabá!”.

- Guerra de opiniões e de crenças. Há quem acredite que ser grande, ter glória e ter realização seja dominar e ser servido, ser o centro de tudo e tirar vantagem sempre e de qualquer maneira. O ego, o eu mesquinho busca sempre a própria satisfação e prazer. Aqui temos a fonte de toda competição, conflitos e guerras. É o mundo que conhecemos! É o mesmo mundo que criou até uma tal teologia da prosperidade. Pedro, sumos sacerdotes, escribas e anciãos bebiam desse espírito mundano e militaram contra Jesus. Jesus reagiu!

- “Afasta-te ... para trás de mim!”, disse Jesus a Pedro e diz a todos os discípulos. É como se Jesus dissesse: “Não sou o que vocês pensam de mim!” A salvação do Senhor não coincide com nossa avidez de ter, poder e aparecer, mas no serviço, em ser sal da terra, luz do mundo, semente lançada em vista de belos frutos de justiça, paz e solidariedade. Assim se vence o mal no mundo. Tomar a cruz, morrer de cruz, significa serviço, ser sal da terra, luz do mundo, semente lançada em vista de belos frutos de justiça, paz e solidariedade.

- Andemos atrás dele (“Afasta-te ... para trás de mim!”). Só assim não caminharemos para a morte mantendo-se em fome de ter, poder e aparecer, mas caminharemos para a vitória sobre a própria morte. Para a fé cristã só uma força vence a morte: o amor, pois Deus mesmo é amor. E amor é ser serviço, ser sal da terra, luz do mundo, semente lançada em vista de belos frutos de justiça, paz e solidariedade.

- Só contemplando a Cruz podemos deixar de lado nossas fantasias religiosas. Todas as religiões vivem de fantasias, são produções humanas: projetamos nossa agressividade e sede de prazer na imagem de Deus (teologia da prosperidade, por exemplo). A Cruz desmente tudo isso: Jesus não reage à violência com violência e não busca o próprio prazer pisando nos outros, denegrindo o outro. Jesus não se nega a encarar o sofrimento, a morte, a vida real: aqui não estamos mais no domínio da religião, mas no domínio da fé. Como uma mãe dominada pelo desejo de salvar um filho não teme pular no mar (sofrimento, morte), assim Nosso Senhor dominado pelo Amor recebe o beijo de Judas, lança seu olhar a Pedro traidor, salva um ladrão arrependido minutos antes de falecer, perdoa a multidão que clama por sua morte, oferece sua vida pela humanidade.

 - “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. “Renuncie-se, negue-se”. Uma pessoa pode, sim, viver petrificado em atitudes, pensamentos e opiniões, carregando e murmurando por toda uma vida uma forma de ser, de reagir, de atacar e de defender. Jesus exortaria tal pessoa a negar e a renunciar tal forma nefasta de viver. Infelizmente há, sim, uma própria falsidade que não permite uma libertação acontecer, que não deixa o sopro do Espírito refazer todas as coisas trazendo principalmente a alegria de viver, o louvor e o júbilo. E, assim, a vida se torna amarga por falta de um “renunciar-se”. Deixemos uma pior parte de nós, abracemos a melhor parte, tomemos nossa Cruz! Carregar a Cruz é lutar contra o mal que carregamos dentro de nós. Acatemos a Cruz, não deixemos que o mal triunfe dentro de nós, façamos nascer e brotar nosso verdadeiro “eu”, nossa melhor parte. Jesus tinha ciência de que nasceu para nos amar e dar a vida por nós: esse era seu “eu”, seu “nome”, sua “felicidade”. E quando a oportunidade se fez presente não freou seu amor, carregou a Cruz. Qual combate maior devo travar para que a erva daninha que cresce em mim não abafe minhas rosas? Quero de verdade seguir a Jesus, isto é, ter vida pulsante, em abundância? Avisamos logo que isso não é para preguiçosos: exige tomada de decisão e êxodo (“siga-me”).

- “Aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á”. Diante de tais palavras tão perturbantes, diríamos que uma pessoa que não se rende, que não cede a própria vida, alma ou coração ao amor, fracassou, perdeu a vida, pois resta-lhe somente desilusão. Trata-se de viver respondendo a alguém (para além de um solipsismo, de um egoísmo qualquer): “... a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (Gal 2, 20). “As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor… seria tratado com desprezo” (Cânt. 8, 7). Toda desilusão acontece quando nos dedicamos a uma pessoa ou causa e esperamos um retorno que não vem. Jesus, o Mestre, nos ensina que o melhor investimento a fazer com a vida é fazer dela uma dedicação, dedicação à causa dEle.

- Salve sua vida, não a conserve preguiçosamente fazendo dela um mero passar de anos dedicados a olhar-se no espelho e ao próprio umbigo, sem nenhum empenho sério com as pessoas e com o trabalho.

- “Que servirá a um homem ganhar o mundo inteiro, se vem a prejudicar, deteriorar, estragar a própria vida? Ou que dará o homem em troca da vida?” Assim como o coração permanece sadio enquanto não retém sangue (seria um infarto), mas “bomba”, envia, doa sangue para o resto do corpo, assim também a minha vida permanece viva enquanto não se abraça a si mesma, mas enquanto ama, se doa, se faz serviço, semente lançada. “As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor… seria tratado com desprezo” (Cânt. 8, 7).

- Sejamos sábios. Trata-se de não perder a própria alma, a vida, o próprio caminho. Sejamos sábios. Não demos as “pérolas aos porcos”, não entreguemos nossa vida a qualquer investimento. Não digamos quaisquer palavras, não nos relacionemos com as pessoas de qualquer maneira, não arruinemos, estraguemos nossa vida em uma vida dissoluta, malandra, corrupta, marcada por maus sentimentos e pensamentos. Não sejamos mentirosos conosco mesmos entregando-se à cobiça, à concupiscência da carne, à concupiscência dos olhos e à soberba da vida (cf. 1Jo 2, 16).

- Há muitas maneiras de viver que nos levam longe de nós mesmos, do nosso Deus, da nossa Origem. Levam-nos a perder toda fé na vida e toda esperança no amanhã. Há muitas formas de viver que nos levam longe de nossa família, filhos, filhas, esposo, esposa e longe também da família religiosa. O perigo é não mais encontrar o caminho de volta ( “Ou que dará o homem em troca da vida?”).

- “Ou que dará o homem em troca da vida?” A vida, minha identidade mais profundas, o meu nome, minha dignidade, se eu a perder, não será com aplausos, reconhecimentos, dinheiro ou poder que a comprarei de volta. Uma vez Jesus chamou pessoas que viviam só para aplausos, dinheiro e poder de “sepulcros caiados” (disfarçados): por fora, boa aparência. Por dentro, só podridão, carniça.

- “... o Filho do homem ... dará a cada um conforme as suas obras”. Eu não sou o criador do bem e do mal. Mesmo quem não acredita em Deus, tem a própria consciência que o julga. Sejamos sábios, abracemos o bem, tomemos decisões e resoluções pela bondade, pois, afinal, com o mal eu me faço mal, eu me perco, sou derrotado; com o bem, eu me faço bem, eu venço. É ilusão medonha acreditar que minhas ações e falas desonestas me acarretem algum bem. Eu não posso decidir o que seja o bem. Eu não posso decidir o que seja o mal.

- “Eu vos garanto que alguns dos que aqui se encontram não morrerão antes de verem o Filho do homem vir em seu reino”. Vivendo como filho de Deus, eu posso viver vendo o Filho do homem, afinal a vida do Senhor se faz presente na vida de seus discípulos: “Deus ... deu-nos vida por Cristo ... e nos ressuscitou com ele e nos sentou nos céus em Cristo Jesus!”(Ef 2, 6); “Com ele ... fostes também ressuscitados ...” (Col 2, 12); “... Estais mortos e vossa vida está oculta com Cristo em Deus” (Col 3,3).

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.