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Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 01/08/2020 - 11:00

XVIII Dom Comum Mateus, 14, 13-21

- “A essa notícia, Jesus partiu dali numa barca para se retirar a um lugar deserto, mas o povo soube e a multidão das cidades o seguiu a pé” (v. 13). Jesus está realizando uma travessia que faz lembrar o “êxodo”, a saída do Egito, a saída da terra da escravidão, da opressão, da injustiça, da saturação da vida, da reclamação e da insatisfação do viver, a fim de adentrar no Reino de Deus, Reino de encontros com Deus e com os demais, Reino de partilha do que somos e temos, de solidariedade com todos, de alegria por viver.

- “Quando desembarcou, vendo Jesus essa numerosa multidão, moveu-se de compaixão para ela e curou seus doentes” (v. 14). Jesus faz uma travessia, um êxodo, sai daquele resto de mundo antigo (a barca), e vê e sente. Importa desvencilhar de tudo aquilo que nos impede de vê e sentir o outro diante de nós. E vendo e sentindo, Jesus, foi impactado, afetado até no mais íntimo, nas entranhas.   

Certamente, foi muito impactante para Jesus desembarcar e se deparar com o que não se esperava: uma numerosa multidão (cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças). Foi tão impactante que o emocional atingiu o físico. De fato, narra-se que ele sentiu suas entranhas, comoveu-se, compadeceu-se, sentiu a dor dos doentes e enfermos, cuidou deles, cuidou dos fracos, daqueles que caminhavam com muita dificuldade. Tal passagem nos revela que o motivo primeiro da ação, da bem-vinda e benfazeja ação de Nosso Senhor a nosso favor é mesmo sua compaixão diante de nossas dores. A compaixão de Jesus para com a humanidade sofredora é tal que jamais deixará de se consumir, perder forças, à nosso favor. Tal compaixão o levou até a Cruz e permitiu, por exemplo, que a mulher hemorroíssa arrancasse-lhe forças. A compaixão será o seu motivo de combate a fim de que o mal não se propague sobre a terra.

- “Caía a tarde. Agrupados em volta dele, os discípulos disseram-lhe: ‘Este lugar é deserto e a hora é avançada. Despede esta gente para que vá comprar víveres na aldeia’” (v. 15).

Lugar deserto, lugar de necessidades afloradas. O ser humano é um ser de precisão, sente necessidades, sente fome e sede: carece de afeto, de estima, de amizade, de compreensão, de saber, conselho e luz para o caminho, de saúde, de casa por habitar. “Ninguém é uma ilha”: porque sou necessitado, preciso dos outros. Para uma vida plena, saciada e abundante, eu sou chamado: preciso de uma vida partilhada, de um “pão” partilhado, de um “pão” saboreado em comum.

- “Caía a tarde”. A noite chegava, nada de iluminação, fim de dia. Humanamente falando, não havia mais o que fazer. Triunfo das trevas sobre a luz, da morte sobre a vida; triunfo da noite sobre o dia, das impossibilidades sobre o possível; triunfo do deserto, da morte, sobre a vida. Porém, não esqueçamos: o “cair da tarde” no mundo da fé é o início de um novo dia, de uma nova vida, de um mundo inaudito. De fato, o “lusco-fusco” é misterioso, é chamativo, promete, é transitivo, é travessia, é um deixar e largar, é véspera de despertar.

Os discípulos sugerem que se despeça a multidão; sentem o quanto a companhia de tanta gente necessitada de abrigo e de comida é um peso. Os discípulos, seguindo uma lógica mundana e consueta, sugerem que cada pessoa se “arranje” como possa, afronte com as próprias forças os próprios problemas. Para os discípulos a solidariedade é uma quimera (não existe).

- “Jesus, porém, respondeu: ‘Não é necessário: dai-lhe vós mesmos de comer’” (v. 16).

Existe um alimento (um abrigo, uma sobrevivência) que não sacia, que é fruto de negócios (compra e venda) organizados segundo uma certa lógica criada por nós. De fato, os discípulos disseram: “Despede esta gente para que vá comprar víveres na aldeia” (v. 15).  Jesus, no entanto, nos ensina que há outro alimento que realmente satisfaz. É o alimento que nasce da gratuidade, que é fruto de uma doação. Alimento que outro me doa, que não é meu, que não me custa. Alimento que doo a outro sem reservas, sem pedir nada em troca.  Este alimento sacia.

É bem verdade que vivemos na lei do mercado (lei do consumo, lei da compra e venda de produtos e serviços), mas a vida não pode se resumir a esta lei. A “partilha do pão” narrada no Evangelho de hoje quer centrar a atenção sobre a doação e a partilha do que somos e temos como única forma de nos saciar e de encontrar a paz no corpo e na alma, na família e na sociedade.

- “Mas – disseram eles – nós não temos aqui mais que cinco pães e dois peixes. ‘Trazei-mos’ – disse-lhes ele” (vv. 17-18).

Os discípulos se dão conta que possuem algo, mas não sabem o significado de ter algo. É bem verdade que podemos possuir poucas coisas ou bens e poucos recursos humanos. Porém, isso não é tudo. Não precisamos temer que passaremos necessidades quando Deus entra em ação, isto é, quando colocamos em comum o que temos e somos; quando derrotamos a lei da besta, pois, há, sim, um esquema de compra e venda, um esquema de sobrevivência que esmaga o mais fraco e é regido pelo demoníaco. “... vi outra besta ... com dois chifres ... que falava como dragão. ... e fazia a terra e seus habitantes adorarem a primeira besta ... Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na testa, para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome” (Apoc. 13, 11-17).

Que aquilo que somos e que venhamos a ter sejam levados ao altar da solidariedade, pois há uma espécie de impossibilidade da parte de Jesus de agir caso não haja uma nossa colaboração ou uma interação com Ele. O milagre da saciedade existe, mas não esqueçamos que Ele disse: “Trazei-me os pães e peixes que tendes” (v. 18).

- “Mandou, então, a multidão assentar-se na relva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, elevando os olhos ao céu, abençoou-os. Partindo em seguida os pães, deu-os aos seus discípulos, que os distribuíram ao povo” (v. 19).

Realmente as coisas mudam quando o que temos e somos são entregues ao Senhor. Não há mais deserto, mas relva (Mandou a multidão assentar-se na relva). Mais do que sentada, a multidão é convidada a quase deitar-se a fim de banquetear-se como pessoas livres. O entardecer some, não há mais escuridão. O deserto floresce. Uma nova luz, um novo dia, faz desaparecer as trevas.

“... tomou os cinco pães e os dois peixes”: Jesus nos ensina a acolher os bens a nós doados para que sejam bem administrados, não meramente possuídos. Que os bens deste mundo jamais se tornem um fetiche (objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico) , jamais se tornem um ídolo, mas sirvam para produzir vida para mim e outros, para gerar louvor ao Pai e criar contentamento e não guerras e intrigas.

“... elevando os olhos ao céu, abençoou-os”. A vida, o que somos e temos nos veio do Criador, é dom e graça, e somos gratos por isso, reconhecemos a fonte de todo bem e queremos também repetir tal bondade. Eucaristia significa “dar graças”: que a nossa vida se torne eucarística, isto é, cheia de agradecimento, acolhendo tudo como dom por doar-se, e não por reter.

“Partindo em seguida os pães ... ”. Partiu, não multiplicou. Na partilha acontece a saciedade e a exuberância (doze cestos sobraram). O mero multiplicar ou acumular bens, a humanidade já sabe fazer. Neste multiplicar ou acumular, a humanidade também faz experiência que muitos são deixamos com fome e sede, e até mesmo os que possuem continuam com fome e sede de sentido, de alegria, de amor, de esperança, e do próprio Deus. O Evangelho de hoje nos ensina que só a partilha do que temos e somos pode trazer saciedade para todos.

- “Todos comeram e ficaram fartos, e, dos pedaços que sobraram, recolheram doze cestos cheios” (v. 20).

Todos comeram”: todos são destinados a receberem esta notícia, este Evangelho. Todos nós podemos nos considerar incluídos naquele olhar e naquela compaixão de Jesus.

Doze cestos cheios”: um para cada tribo de Israel, um para cada mês do ano. Na partilha do que temos e somos, encontramos vida e alimento para todos e para sempre.

- “Ora, os convivas foram aproximadamente cinco mil homens, sem contar as mulheres e crianças” (v. 21). Cinco mil é o número da comunidade primitiva: “... e o número dos fiéis elevou-se a mais ou menos cinco mil” (At 4, 4). A comunidade cristã é capaz desta nova lógica ensinada por Jesus a fim de que todos nós nos sintamos saciados. A comunidade cristã, desta maneira, se torna uma profecia para este nosso mundo tão marcado pela escravidão dos bens que termina por deixar tantos sem um sentido maior para o viver; tão marcado pelo egoísmo e narcisismo que não permitem ver e nem sentir compaixão; tão marcado pela corrupção que impiedosamente produz tanta fome e tanta sede. 

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.