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Homilia do V Domingo da Quaresma - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 29/03/2020 - 19:17

V Domingo da Quaresma - ano A

(João 11, 1-45)

Jesus nos abre os olhos, e isso vimos semana passada (cf. Jo 9, 1-41). Mas para nos mostrar o quê? Para nos mostrar nossa meta maior, para nos fazer afrontar o último inimigo: a morte. Uma velhice prolongada será vitória sobre a morte? Ser pessoa humana é se questionar sobre o sentido da vida e da morte. Quando os anos nesta terra se concluem há ainda sentido? De um lado anelo a vida, de outro não vejo a vida, mas meu enfraquecer, meu envelhecer: como sair desse embaraço? Posso tentar suspender tais questionamentos, mas isso não impede que minha morte me cerceie, assole e acosse. O Evangelho deste domingo é um mergulho em tais perguntas e angústias da humanidade.

- “Lázaro caiu doente em Betânia, onde estavam Maria e sua irmã Marta. ... Suas irmãs mandaram, pois, dizer a Jesus: ‘Senhor, aquele que tu amas está enfermo’”.

Aqui temos uma comunidade cristã, formada de irmãos que sentem o amor do Senhor.  E como em nossas comunidades e famílias de hoje, naquele tempo a enfermidade se faz presente.

- “Ora, Jesus amava Marta, Maria, sua irmã, e Lázaro. Mas, embora tivesse ouvido que ele estava enfermo, demorou-se ainda dois dias no mesmo lugar. ... Depois destas palavras, ele acrescentou: ‘Lázaro, nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo’. .... Então Jesus lhes declarou abertamente: ‘Lázaro morreu’”.

Morte! Por que se morre? Assim como no tempo de Lázaro, na comunidade cristã também se faz presente a morte e os cristãos são chamados a testemunhar sua esperança a todos os homens.

O Evangelho de hoje atesta que a vida biológica que todos nós temos pertence a este mundo. O cadáver pertence a este mundo e à sua natureza com suas leis criadas pelo Criador. O nosso corpo biológico interage e sempre há de interagir com a criação. Ao mesmo tempo, o cristão tem o “hálito” divino, tem a vida do Eterno já nesta vida. Ao morrer, o cristão com esta Vida do Eterno entra definitivamente e sem reservas no Reino de Deus. “O vivo” (o cristão) entra na Vida. Não é por acaso que Jesus disse: “Hoje estarás comigo no paraíso”. A vitória sobre a morte, na verdade, é pautar a vida, levar uma vida, nesta terra, não mais tocada pela morte: “... todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá”.

Para fazer parte da Vida Eterna ou do Eterno o homem deve passar pela morte biológica, deve “deixar” este mundo, deve ser render diante dos achaques da idade ou das enfermidades. A vida biológica pertence a este mundo. Mas a vida da Graça nos dada por Jesus Cristo (graças à sua paixão, morte e ressurreição), a Vida Divina, continua, e, assim, entramos na Vida do Eterno. Não é o cadáver que entra na Vida. O cadáver é deste mundo. Vida eterna não é reanimação de cadáver.

- “À chegada de Jesus, já havia quatro dias que Lázaro estava no sepulcro. .... Marta disse a Jesus: ‘Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido! Mas sei também, agora, que tudo o que pedires a Deus, Deus to concederá’”.

Marta expressa muito bem tudo aquilo que alguém possa dizer ou sentir diante do falecimento de um ente querido. Em outras palavras, ela diz a Jesus que ele não deveria ter permitido que Lázaro viesse a óbito.  Por vezes pergunta-se pelo poder de Deus diante da morte de um inocente, de um indefeso.

Marta ainda não sabe que Jesus é Deus encarnado entre nós. De fato, pede que ele seja um intercessor tal como um homem santo: “...tudo o que pedires a Deus, Deus to concederá”. 

Tentativas. Os humanos sempre tentaram alívio perante a dor e o enigma da morte. Uns com muita fé, outros em seitas e “igrejas”, outros com filosofias, outros com choros, outros com luto, outros com resignação, outros com apatia. Aquilo que o Evangelho hoje nos revela é que sem a Luz do alto, sem a intervenção da vida do Eterno, restaremos para sempre, à míngua, sonhando por uma solução. O mundo jaz nas trevas, as mentes em quase total escuridão sem o evento Jesus Cristo. A vida da Graça, o dom do Espírito Santo, nos dá luz diante do mistério da morte. Santo Inácio, condenado à morte por ser cristão, escreveu: “...  faço saber que com alegria morro por Deus.  Sou trigo de Deus: que seja eu triturado pelos dentes das feras para tornar-me puro pão de Cristo! ... Procuro aquele que morreu por nós: quero aquele que por nós ressuscitou. Meu nascimento está iminente. ... desejo ser de Deus. ...  apenas uma água viva e murmurante dentro de mim, dizendo-me em segredo: ‘Vem para o Pai!”.

A “solução” do enigma chamado “morte”, na verdade, se encontra numa vida “enxertada” em Cristo, isto é, quando o amor a Deus e ao próximo se faz vivo e atuante: “Quem ama passou da morte para a vida”. Já antes de Cristo pensou-se que só o amor pode afrontar a morte: “O amor – entre um homem e uma mulher - é forte como a morte, é uma faísca de Javé”. Abismo chama, atrai, abismo: assim como a morte é abismal, assim também o amor o é. São João nos revela que o Amor que é Deus vence a morte: “Quem ama – o irmão – venceu a morte, isto é, quem se reveste de Deus, pois Deus é amor, venceu a morte”.

“Disse-lhe Jesus: ‘Teu irmão ressurgirá’. Respondeu-lhe Marta:’ Sei que há de ressurgir na ressurreição no último dia’. Disse-lhe Jesus: ‘Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá. Crês nisto?’”.  

Jamais morrerá”. A Vida futura já se antecipou, isto é, o cristão não morre, pois foi renascido pelo Espírito de Deus, espírito eterno: tem a vida do eterno em si. Não pode morrer e quando falece, na verdade, está entrando, sem reservas e titubeios, na ressurreição, no reino de Deus. “Não morre”: quem acolhe a vida dada por Jesus desde já tem a Vida eterna e a morte se torna até bem-vinda enquanto ocasião de entrada definitiva no Reino. Desta maneira, podemos entender São Francisco de Assis: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal”.

Por vezes, as pessoas diante de uma pessoa falecida imaginam que ela tornará a viver se por acaso começar a falar, andar, comer, rir, estudar, etc. Não! A vida eterna não é uma reanimação de um cadáver. O cristão falecido na graça de Deus passa-se desta vida vivida “enxertada” em Cristo para a vida definitiva.

- “Quando, porém, Maria chegou onde Jesus estava e o viu, lançou-se aos seus pés e disse-lhe: ‘Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido!’Ao vê-la chorar assim, como também todos os judeus que a acompanhavam, Jesus ficou intensamente comovido em espírito. E, sob o impulso de profunda emoção, perguntou: ‘Onde o pusestes?’ Responderam-lhe: ‘Senhor, vinde ver’. Jesus pôs-se a chorar. Observaram por isso os judeus: ‘Vede como ele o amava!’ Mas alguns deles disseram: ‘Não podia ele, que abriu os olhos do cego de nascença, fazer com que este não morresse?’ Tomado, novamente, de profunda emoção, Jesus foi ao sepulcro. Era uma gruta, coberta por uma pedra”.

Jesus permite que Lázaro morra. Jesus quer se reconhecido por Lázaro como aquele que doa a verdadeira vida, e não como um “quebra-galho”, como um mero “consolo” de bebê ou como um pregador da “teologia da prosperidade”. Certamente, Lázaro não foi mais o mesmo depois de ter experimentado a morte. Quantas vezes precisa-se chegar ao fundo do poço para haver um despertar, para se começar a caminhar com as próprias pernas. Perguntemos-nos: nossa relação com Deus é uma fuga da vida e das nossas responsabilidades? Será que o Senhor terá que demorar a nos responder para que caiamos na real e descubramos que resolver certos problemas cabe somente à nós?

Jesus se comove, chora, suspira, se emociona... Que é isso? Estará sentindo em si mesmo o drama, a agonia de todo ser humano e o quanto custa vencer a morte? Obedecer à Palavra, ser homem de fé, deixar pessoas e situações queridas para prosseguir para a Vida do Eterno custa muito! Alguém diz que Lázaro morreu por não conseguir viver sem o caro Jesus por perto. De fato, sua irmã disse a Jesus: “Se estivesses aqui meu irmão não teria morrido”. Não é por acaso que Jesus dirá para o bem de Lázaro: “Desligai-o e deixai-o andar” (“Lázaro, desliga-te de certos vínculos que não te deixam andar; pare de se oprimir”).

Pergunte-se: o que me faz morrer, não viver? “Paixão” por alguém? Carência? Não aceitar o que aconteceu? Medo do amanhã? Medo da solidão?

- “Jesus ordenou: ‘Tirai a pedra’. Disse-lhe Marta, irmã do morto: ‘Senhor, já cheira mal, pois há quatro dias que ele está aí’...Respondeu-lhe Jesus: ‘Não te disse eu: Se creres, verás a glória de Deus?’”.

Tudo se acabou. “Não há mais festa nem carnaval: eu acho que fui enganado”, dizia uma canção. A imagem de uma gruta coberta por uma pedra gera a ideia de que tudo se acabou, de que realmente não há mais nada por fazer. O jogo acabou. Perdemos. E isso é tudo. Nenhuma boa notícia. A morte é o pastor que nos apascenta e - depois de tanto dela fugir com os avanços da medicina-  nos pegará do mesmo jeito. É só uma questão de um ano a mais ou a menos. Diante de tétrico cenário, Jesus anuncia a Glória de Deus que rompe pedras, tira pedras, e nos abre a novas relações. De fato, o silêncio da tumba fechada por uma grande e pesada pedra é ausência de comunicação, de comunhão, de amizade, de relações. O “tirar das pedras” significa que o encontro foi retomado. Por isso os místicos rezavam: “Rompe, ó Senhor, a tela do nosso doce encontro”; “Morro porque não morro” (sofro porque não morro, pois morrendo terei acesso a Ti); “Vem irmã morte”. Que o Cristo vivo e atuante rompa as duras pedras que nos separam d´Ele e dos irmãos, e que possamos experimentar a “Vida de ressuscitados”.

Tirem a pedra, com Cristo não há mortos. O mundo dos vivos – os “enxertados em Cristo” -  desta terra não é separado dos que estão na casa do pai: “o amor de Cristo nos uniu”. Em Cristo vivo, todos os redentos (os daqui e os de lá) estão em comunhão espiritual no corpo místico de Cristo.

- “Depois destas palavras, exclamou em alta voz: ‘Lázaro, vem para fora!’. E o morto saiu, tendo os pés e as mãos ligados com faixas, e o rosto coberto por um sudário”.

Como pôde sair com pés atados, e olhos vendados?  São João aqui é sutil, fala de uma Vida que faz “andar” e “ver” para além do biológico, pois saiu sozinho com pés atados.  “Ordenou então Jesus: ‘Desligai-o e deixai-o ir’”. A Palavra de Jesus, sua ordem à Lázaro, às suas irmãs e aos amigos fez com que Lázaro se tornasse homem vivo, livre e em caminho para o Pai. Que nossas relações sejam assim tão sadias que não aprisionem o outro, mas ajudem ao irmão responder aos desígnios de Deus para com ele.

“Desligai-o e deixai-o ir” é como se Jesus ensinasse: “Lázaro, viva pela fé em Deus e pelo amor para com os outros, e não exigindo que eu esteja em corpo presente e visível”. Afinal, não basta amar a Jesus, urge crer nele, nas suas palavras, na sua missão. Jesus é o caminho e a vida, aponta para um caminho ainda não traçado por nós, caminho esse ainda desconhecido, uma aventura de amor que nos levará à Vida. Só deixando as ataduras e as vendas e indo para onde as palavras do Senhor apontam, é que iremos superar o último inimigo do homem.

Quanto maior o inimigo, maior a luta. Se a morte é o ultimo inimigo, ela exige a maior luta. A fé nos diz que a vitória está garantida, afinal Jesus ressuscitou e seus apóstolos se deixaram matar por isso. Mas a batalha é travada em cada um de nós. Assim como bebê vem a este mundo deixando o “aconchego” do ventre materno, assim nós venceremos a morte, deixando certas, na fé, “placentas e restos fetais” (meu egoísmo e meu egocentrismo) e tendo a ousadia de nascer para a Vida. Quanto maior o inimigo maior a luta. O golpe mortal que daremos na morte será a oferta amorosa de nossa vida. O segredo é sempre o Amor.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.