Tamanho do Texto:
A+
A-

Homilia da Solenidade de Todos os Santos - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 31/10/2020 - 11:21

Solenidade de Todos os Santos - Mateus 5, 1-12ª

 Na Solenidade de “Todos os Santos” consideremos que há um único corpo místico de Cristo. Nós que peregrinamos e aqueles e aquelas que já estão mais plenamente em Deus (Igreja militante, purgante e triunfante). Estamos vivos, estamos em oração uns pelos outros, pois para Deus todos vivem: “Eu, João, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro ... estão diante do trono de Deus e lhe prestam culto, dia e noite, no seu templo” ((Ap 7,9.14). Ao contrário do que dizem alguns, os que morreram em Cristo estão vivos e felizes.

Como pautar a vida rumo ao máximo desabrochar da minha pessoa, ao máximo que a vida e a fé no Deus de Jesus possam nos dar? Como não consumir nossos anos de vida em vão? Neste sentido, acreditamos que o sermão da montanha possa nos ajudar!  O “sermão da montanha” é um “guia” que nos leva a nos tornar aquilo que somos: filhos à imagem do Pai.

Bem-aventurados os que têm um coração de pobre e para os pobres porque deles é o Reino dos céus!

Basicamente Jesus apregoa que devemos respirar do espírito de Deus, viver d´Ele, não das posses e poderes que venhamos a possuir. Tal espírito divino nos fará senhores e administradores dos bens e não escravos dos mesmos. Os meus bens interiores e exteriores serão em vista de uma causa maior, para além de um mesquinho interesse. Não serei mais escravos deles, mas eles servirão a mim e a tantos.  Todos os meus recursos interiores, minha influência e bens serão postos em favor da comunidade. Marcello Candia, grande industrial católico, decidiu destinar parte do lucro de sua empresa em vista de uma “Fundação”. Tal Fundação, hoje em dia, socorre inúmeros pobres, idosos abandonados e leprosos em vários países, inclusive no Brasil. Marcello escutou e cumpriu a “bem-aventurança”, tinha um coração de pobre, de quem em Deus confia o seu “destino”, o seu amanhã.

Ter coração de pobre, pobre em espírito, ou ter o coração para o pobre faz com que se trabalhe em vista de eliminar a causa da pobreza que parece roubar a dignidade de tantas pessoas. Mais do que esmola o convite é mesmo para se partilhar os recursos a fim de tornar o outro “meu irmão”, isto é, em igual condição de dignidade que eu possuo. Toda comunidade cristã, assim como cada pessoa cristã, é convidada a adquirir este coração que se volta para os irmãos que estão “na pior”, a fim de que estes, por sua vez, se tornem felizes, sejam bem-aventurados, comecem, também eles, a possuírem um coração voltado para outros tantos a serem socorridos.

Ao homem ou mulher que tenha o coração centrado em Deus e no irmão, Jesus anuncia uma verdade: possui o Reino dos Céus, tem a Deus como rei, Deus reina no seu coração, e cuidado é pelo próprio Senhor.

Bem-aventurados os que choram, os aflitos, porque serão consolados.

Perante tanta melhoria possível e tanta chance de eliminar o sofrimento de tantas pessoas, resta ao cristão se afligir. O cristão se aflige porque outros sofrem. A aflição e o choro, neste contexto, significam uma força interior, uma resistência contra o descaso e a indiferença. É perigoso a indiferença e o descaso, pois podem nos levar ao cinismo e à hipocrisia. Somente respirando o mesmo Espírito de Deus iremos perseverar na aflição, isto é, não seremos indiferentes. Lembremos que os aflitos são felizes, bem-aventurados, porque serão consolados, receberão as promessas de Deus. Perseveremos, portanto, neste caminho de felicidade, de bem-aventurança, sendo solidários e próximos aos aflitos, pois, assim, experimentaremos a proximidade de Deus, seremos consolados. Deus é solidário e contrário à injustiça e à mentira que parecem vencer. Sejamos “bem-aventurados”, nos coloquemos em marcha, não cruzemos os braços e nem entremos no sistema do “Tô nem aí”.

A comunidade cristã é chamada, também ela, a consolar os irmãos e irmãs que passam por aflição. Trabalhemos, portanto, para atingir o mal pela raiz e, assim, eliminar tantos motivos de sofrimento junto às pessoas e nossas famílias: “Pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos” (1Tm 6, 10).

Que em nossas comunidades cristãs os sofredores encontrarem a paz.

A nível pessoal significa nossa capacidade de reconhecer nossa carência, nossa aflição, nosso pedido de ajuda. Não sejamos autossuficientes, encontremos o consolo na família, na comunidade.

Bem-aventurados os mansos e humilhados porque possuirão a terra!

Não te irrites contra os que praticam o mal e nem invejes os que praticam iniquidades” (Salmo 37). É difícil resistir à tentação, e é fácil ceder ao mal quando você se vê injustiçado, traído, enganado. A Palavra de Deus nos atrai, nos pede adesão e nos convida a não usar a arma do agressor. Temos que nos empenhar, nos defender, mas com a disposição do homem de coração manso. E Jesus promete, ao manso, vencer, ser gente de sucesso, possuir a terra, a dignidade, a honra.

Na Igreja de Jesus é possível, sim, sair de toda humilhação, é possível possuir a terra, viver dignamente em família e em comunidade: “Todos os fiéis viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e os seus bens, e dividiam-nos por todos, segundo a necessidade de cada um”; “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 2, 44-45; 4, 32).

Psicologicamente, também é um convite a ser mais flexível, menos exigente, menos irritado consigo mesmo.

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados, receberão a plenitude da vida!

Não se trata da justiça contida na “Constituição” do Brasil e nem nos diversos códigos (do consumidor, penal, de trânsito etc.), mas de uma justiça que se identifica com a vontade de Deus: um mundo onde todos nós formamos uma só família que partilha do que se tem e do que se é. 

Jesus é tremendo em suas palavras! O que mais nos dá apetite do que matar a fome e a sede? Por isso, Nosso Senhor pede que tenhamos esse mesmo penar e gana por instaurar a justiça, a vontade do Pai d´Ele e nossa.

Há uma história, uma vida e um tempo que se acabam, passam. E há uma história, uma vida e um tempo que permanecem. Nossa sede e fome estão de que lado? Beato e feliz é aquele que tem fome e sede de viver nesta terra com o amor do Pai que está no Céu que não passa, não se acaba. Será pleno de vida, será saciado, quem se faz solidário de corpo e de alma a fim de que todos tenham a parte, o salário, que lhes cabe.

Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia!

Jesus nos revela: o Pai é misericordioso, isto é, tem amor incondicional e fiel. Nada deste mundo pode arrefecer seu amor em relação ao homem. Como se atua a misericórdia? 1º. Dando-se conta da necessidade do outro tal como o bom samaritano. Não basta se irritar ou gritar porque ainda há tantas crianças abandonadas. Pior ainda fazer de conta que elas não existem. O penar do irmão será nosso penar e daremos uma resposta, tomaremos uma atitude. 2º. Provando compaixão com o outro. 3º. Intervindo concretamente como o bom samaritano. Aos misericordiosos foi dada uma promessa: serão “tragados” e fisgados pela filiação divina, serão filhos de Deus, pois terão entrados em sintonia com “O Misericordioso”. Os misericordiosos alcançarão misericórdia, isto é, sentirão, receberão a ajuda do Pai das misericórdias, assim como ajudaram com sua misericórdia os irmãos carentes de uma “mão”, de uma “palavra”, de uma “presença”.

Pois é... Quem é misericordioso está em sintonia com “O Misericordioso”. “Deus é amor e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1Jo).  Falar de Deus? Ensinar doutrina? Comportar-se bem? Tudo muito bom, mas ainda não é tudo, ainda não se está navegando em Deus.

Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus!

Prossigamos em nossa vida sendo guiados somente por Deus, sem mistura, sem ídolos, puros. Que no nosso coração haja retas decisões e intenções e não segundas intenções, interesses espúrios. As decisões do nosso coração são tomadas a partir do coração do Senhor Deus Altíssimo ou a partir de um ídolo interesseiro e mesquinho?   Por qual espírito você se guia ao tomar decisões no coração?

Jesus atesta que existem irmãos e irmãs que têm o coração puro, o coração de filhos de Deus. O coração puro é morada de Deus, não só visitado por Ele. É um coração que se entretém com o Senhor, que vê a Deus. Infelizmente, podemos ofuscar a presença de Deus em nosso interior, perder nossa “raiz”, nossa “luz”: não é por acaso que podemos passar a viver como que desorientados.

Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!

Batalhar pela paz seja na família seja em nosso mundo traz um retorno de alegria e felicidade.

O pacificador promove a paz. Paz é “shalom”. “Shalom” é a plenitude de todas as bênçãos. Promover a paz entre irmãos é favorecer o ambiente para que todos vivam e experimentem a obra da criação e o fato de ter vindo a este mundo como uma coisa boa, muito boa, e, a partir disso, louvar ao Senhor e render-lhe graças por tantas maravilhas.

Venha a nós o vosso Reino”: que o nosso velho mundo se adeque mais a uma “Ordem” segundo a justiça de Deus. Os pacíficos promovem a paz, o “shalom”, a plenitude de todas as bênçãos. A paz combate a ignorância, as doenças, a fome, o desamparo, as drogas, os desajustes em família. A paz que vem de Cristo não é um acordo diplomático, mas o bálsamo (remédio) para os nossos conflitos. O pacífico, portanto, é todo aquele ou aquela que se empenha na promoção da paz, e, por isso mesmo, é considerado por Deus como filho seu, pois realmente é semelhante a Deus. Imaginemos Deus dizendo ao pacífico: “Você me é semelhante, você é meu filho”.

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus!

Atenção! Os que marcham impávidos rumo à felicidade não ficarão tranquilos. O velho mundo pecador vai reagir, pois o velho mundo pecador também tem sua idéia de “bem-aventurado”, de felicidade.

Madre Teresa dizia: “No dia que você fizer o bem pode ser que alguém lhe recrimine. Mas continue a fazer o bem. Tudo aquilo que você levou anos para construir alguém pode vir e destruir em uma hora. Mas continue a fazer o bem”. O Reino precisa de pessoas que iluminem e que não perdem a coragem diante de críticas destrutivas e diante do ódio das trevas.

Não se sentir perseguido neste mundo é um péssimo sinal para um cristão. Significa que o cristão não está se opondo, não está combatendo o bom combate, está de braços cruzados perante tantas mentiras, males e dores, ou está comprometido com o mal. No dia que passarmos a combater o mal, ele reagirá. Portanto, não é preocupante ser perseguido, é preocupante não sê-lo.

Atenção. Não se trata somente de sofrer perseguição por parte de outra pessoa ou grupo de pessoas. Pode ser que dentro de nós haja forças que nos perseguem: “Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai e alicia” (Tg 1, 44).

Há uma promessa para o cristão que persiste no bem, mesmo sendo perseguido pelo mal: “... deles é o Reino dos Céus”, o Senhor se faz presente e cuida dos seus filhos

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.