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Homilia da Solenidade de Pentecostes - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 30/05/2020 - 12:15

SOLENIDADE DE PENTECOSTES  (João 20, 19-23)

- “Na tarde do mesmo dia, que era o primeiro da semana” (v. 19), nos faz lembrar uma promessa: “Naquele dia, não haverá frio nem gelo. Será um dia contínuo conhecido somente do Senhor, e não haverá sucessão de dia e noite, e a noite será clara. O Senhor reinará sobre toda a terra. Naquele dia, o Senhor será o único Deus e só o seu nome será invocado” (Zac 14, 6-7.9).

- “... os discípulos tinham fechado as portas do lugar onde se achavam, por medo dos judeus” (v. 19). O MEDO e a CULPA. Uma tranca é uma peça de ferro ou madeira que atravessada deixa as portas mais resistentes caso alguém tente arrombá-las. O Evangelho de hoje narra que os discípulos usaram “trancas” em busca de segurança. Estavam no mesmo local, mas, devido ao medo, cada um estava “na sua”, sozinho e solitário. Muquiados estavam, não unidos. O medo, de fato, nos tranca, nos isola e torna escura a existência. Comportavam-se como “vivo-mortos”. Estavam isolados em si mesmos, como que num sepulcro escuro. O medo pode ser a causa ou o motivo de rechaçarmos os outros, pois muitas relações humanas só terminam em decepção e frustração. O medo nos apavora, e apavorados buscamos uma zona de conforto: o fechamento em si mesmo. 

Além do medo, os discípulos parecem viver também de culpa, do remorso de terem abandonado o Mestre, de terem traído a amizade e o amor. Neste misto de covardia, de abandono da vida e de estagnação, Jesus se faz presente, pois o medo os paralisara e nem mesmo buscavam mais ao Senhor (Madalena buscou). Não sabemos qual foi mais “difícil” para Jesus: se romper a pedra do sepulcro ou romper a pedra, isto é, o sepulcro do coração dos discípulos amedrontados e cheios de culpa. O certo é que o Ressuscitado “invade” o obstáculo que colocamos ao se fazer vivo e presente aos discípulos. É reconfortante verificar que Nosso Senhor vai ao encontro daqueles traidores, medrosos e os chama de irmãos e leva a paz, isto é, se faz presente, vivo, ressuscitado.

- “Jesus veio e pôs-se no meio deles. Disse-lhes ele: ‘A paz esteja convosco!’” (v. 19). Jesus se põe no meio deles, melhor, dentro deles. Ele vem no nosso recôndito mais fechado para se fazer relação. Ilumina as trevas do coração e rompe nossas resistências e couraças. Faz-se presente em meio aos meus medos e angústias, na minha falta de desejo e esperança, na minha descrença, na minha fragilidade e pecado. E, ali, traz a paz. Dizer “eu acredito na ressurreição” é dizer: “O Senhor me deu a paz, iluminou as trevas, fez-me irmão, tirou-me o medo, tirou-me da morte. Ele é o Ressuscitado e vive em mim”.  O Senhor me encontra para me ressuscitar através da paz e da alegria porque encontrar o Ressuscitado significa ressurgir, deixar para trás o medo, a angústia, o desespero, a falta de sentido, a tristeza, a amargura, a justiça meramente terrena.

-“Dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se ao ver o Senhor” (v. 20). “Eu sou o Crucificado. Eu tenho mãos feridas e o coração aberto”. Nós nos apresentamos a outra pessoa sempre declinando o nosso próprio nome. Jesus, no Evangelho, se apresenta mostrando os sinais corporais – mãos e lado aberto - de sua vitória sobre o mal e o pecado. De fato, quando Nosso Senhor foi ao encontro dos seus discípulos mostrou-lhes sua “carteira de identidade”, mostrou-se com as marcas de um crucificado: as mãos chagadas e peito ferido pela lança. Mostrou-se com aquelas mãos com as marcas do serviço, do poder do serviço. O Ressuscitado é o Crucificado, é o amante dos humanos, é o prestador de serviço. No crucificado reconhecemos o verdadeiro Deus que é sempre nosso Senhor, é Senhor para nós, isto é, nos é favorável, vem em nosso socorro.

Com seu corpo, com suas mãos, Ele afagou os doentes e as crianças abandonadas, curou paralíticos e leprosos, matou a fome de multidões, curou a pobre mulher encurvada, lavou os pés dos apóstolos.  Com seu corpo afrontou, padecendo, a maldade humana no alto da Cruz, e com seu amor aos pecadores transformou todo desamor em perdão (“Pai, perdoa-lhes”). As marcas da vitória jamais se perderão. Quem vence e quem ressuscita é quem usa mãos, o próprio poder, a própria força e o coração para erguer o próximo. O que temos feito com nossas mãos? Nosso sangue é derramado para quem? O que construímos ao nosso redor?

- Eles reconheceram o Senhor olhando aquelas mãos e o lado aberto. Não nos iludamos nestes tempos de tantos falsos profetas, lideranças e autoridades religiosas ou não! Olhemos as mãos e o lado aberto. Não é uma emoção, não é um falar bonito que diz que algo ou alguém seja de Deus. “Mãos” e “coração” que ajudam pessoas a recuperarem a dignidade, o respeito, a liberdade, a esperança, o sentido do viver.... são presenças do divino que Jesus nos indicou.

- PAZ e ALEGRIA. Quando me lembro da história de Santa Gianna Beretta sempre fico imaginando sua filha. Como será que ela se sente ainda hoje quando imagina sua mãe grávida que disse ao marido antes de entrar na sala de cirurgia: “Não tenha dúvida. Se o médico lhe perguntar se deve salvar a mãe ou a filha, escolha a nossa filha”. Aquela filha nasceu e vive daquele fato: “Minha mãe morreu por mim, e eu, para ela, fui objeto de predileção. E para mim, ela é a certeza de que o amor de Deus existe, sim, e faz morada em todo coração que acolhe suas mãos e peito feridos de amor por nós”. Contemplando “mãos e o lado aberto”, descobrimos quem é Deus para nós e quem somos para Ele (Para nós, Deus é “mãos e lado abertos”. E para Ele, somos amados em suas mãos e afagados ao seu regaço). Nós cristãos nascemos e vivemos daquele fato: “Do seu lado saiu sangue e água para nós”. Eis o motivo maior para a Paz e a Alegria.

“Paz” é o “Shalom” de Deus, é a soma de todas as bênçãos, a certeza de que há justiça, há perdão, há abundância e saúde. É a alegria de viver - aconteça o que acontecer - pois o Crucificado Senhor está vivo entre nós e o amor venceu o ódio, a vida venceu a morte, a esperança venceu o desespero. Alegria de Deus é um “proveito”, um saborear, um degustar, um contentamento e um dar e receber, uma entrega. A alegria nos promete, nos projeta para um “mais ainda” ou para um “muito mais”. Com a alegria reinando vive-se o momento presente; momento este não perturbado por nada nesse mundo. Tal “Alegria” e “Paz” dão provas da presença do Ressuscitado.

Contemplemos, nos instalemos e fixemos nosso desejo e olhar em suas mãos e lado aberto, e, assim, certamente, teremos escolhidos e acolhidos o dom de sua predileção, dedicação, paixão e amor por nós que se mostram naquelas mãos e lado feridos e sacrificados por nós. Certamente teremos, também, nascidos para uma nova realidade, nova vida, vida de ressuscitados, vida segundo o Espírito.

- “Disse-lhes outra vez: ‘A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós’” (v. 21). “Como o Pai me enviou a revelar o seu amor para com os homens, assim também eu vos envio a vós”, ou seja, “Eu vos envio a revelar o meu amor para com os homens”, ou melhor ainda: “Como eu vos amei, vós deveis também amar-vos uns aos outros, lavar os pés uns dos outros”. Cumprindo tal envio é que nos tornamos como Ele, o Filho por excelência, o Unigênito do Pai. E seremos filhos que revelam o amor do Pai aos irmãos: GRANDE MISSÃO.

Podemos dizer que não tem como a pessoa está envolvida neste “cenáculo” de amor onde Jesus se mostra vivo com mãos e lado amorosamente abertos e ao mesmo tempo não “partir” em missão. Missão é saída de si, é construir novas relações, é desatar “nós” e “amarras”, é instaurar “oásis” de reconciliação, abrir portas, fazer acontecer a confiança nas pessoas e constituir o sentido da família humana. No dia em que nos negarmos a isso teremos perdido nossa humanidade. ISSO É GRAVE! Como podemos ver, aqui nasce a Igreja, a era ou o tempo do Espírito, tempo de vivermos como filhos e irmãos.

- “Depois dessas palavras, soprou sobre eles dizendo-lhes: ‘Recebei o Espírito Santo’” (v. 22). Jesus soprou dentro deles. Como o sopro de Deus que tornou Adão um vivente, como em Ezequiel o sopro de Deus prometeu reviver ossos ressequidos (cf. 37, 5), o Senhor com o seu respiro, sua vida, seu Espírito, nos capacita a ir ao encontro do outro, a fazer o bem, a vencer a morte com o Espírito Santo, com o Amor que há entre o Pai e o Filho (Não esqueçamos que “a-mar” significa matar a morte).

Recebemos o Espírito, que é a vida do Filho que é amado pelo Pai, que é a vida do Pai que é amad o pelo Filho. Respirando, vivendo do Espírito, somos fisgados ao seu da Santíssima Trindade, ao regaço do amor existente entre o Pai e o Filho. A missão, neste caso, jamais será um mandamento, será um transbordar-se em direção a todo semelhante. Importa acolher tal dom, tal “sopro”. Trata-se de imergir-se sempre nesta realidade divina que sempre e incessantemente se dá. O sentido da vida é acolher este dom, isto é, aceitar que Ele me ame tremendamente.

- “Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados” (v. 23). O mal só triunfa onde não há perdão. O mal não triunfa onde há perdão. O perdão revela, portanto, algo mais forte do que o mal. Santa Bakita foi vilipendiada de maneira atroz por vários carrascos. Um dia ela decidiu acabar com o mal: perdoou a seus carrascos. No dia que eu perdoo, eu nasço como filho de Deus, pois me torno como o Pai que perdoa sem limites: “setenta vezes sete”. No dia que o outro é perdoado, ele também, nasce como filho de Deus, pois reconheceu e aceitou o Pai, foi perdoado pelo Pai e aceito como filho. Trata-se de entrar nesta ciranda amorosa que é o nosso “Deus-Trindade”: o Pai ama o Filho e o Filho ama o Pai, e o amor é o Espírito Santo. Sair da dinâmica do perdão é se retirar de tal “jogo” amoroso.

A ação do perdão é vigorosa; é procurar de muitas formas afastar a pessoa da estrada errada; é usar o poder de Deus para neutralizar o mal que quer avançar sobre nossas relações destruindo comunidades e famílias.

- “... àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos" (v. 23).  Imaginem alguém que depois de ter praticado o mal saia dizendo que “otário” ou “besta” é quem se deixou enganar ou roubar. Neste caso, a comunidade cristã pode, sim, declarar que o pecado não foi perdoado, mas permanece. Aqui temos uma denúncia que visa acordar a consciência do malfeitor, pois, afinal, não podemos confundir o mal com o bem, nem o bem com o mal. 

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.